Lá se vai quase uma década desde que o professor Rodolfo Hoffmann, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – ESALQ-USP, confrontou em artigo a propaganda oficial do governo de que a agricultura familiar produzia 70% dos alimentos colocados à mesa dos brasileiros.
À época, em 2014, Hoffman, estudioso da distribuição de renda no Brasil, afirmou que era “espantosa a reprodução sem crítica da porcentagem, porque a afirmativa, em si, não faz sentido”.
O professor apontou que o equívoco estava em documentos do governo, na fala de secretários e ministros e até na Wikipedia. Mostrou com estatísticas que a afirmação era falsa e que o valor monetário de toda a produção da agricultura familiar correspondia a menos de 25% do total das despesas das famílias brasileiras com alimentos.
O censo agropecuário de 2017, o mais recente, também desmentiu os números superestimados da produção familiar, e revelou que as propriedades assim enquadradas respondiam por 23% do valor total da produção dos estabelecimentos agropecuários.
Desde então, a o conteúdo já foi corrigido na Wikipedia, mas o discurso de que as propriedades familiares produzem 70% dos alimentos colocados à mesa dos brasileiros segue vivo, principalmente na política.
A tese repisada é de que são os pequenos agricultores que dão segurança alimentar ao país, enquanto a agricultura empresarial só manda commodities para a China. Cultiva-se, assim, uma falsa oposição entre a agricultura familiar e a produção em maior escala. No atual governo essa dicotomia foi uma escolha, evidenciada pela divisão do Ministério da Agricultura, que perdeu atribuições para o recriado Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Divisão da agricultura tem interesses políticos
“A agricultura familiar é muito importante e tem um papel fundamental, não só no Brasil, como em qualquer lugar do planeta. Mas não precisa de nenhum número artificialmente inflado, não precisa de falsa propaganda para receber méritos pelo ótimo trabalho que realiza", avalia Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"Essa rivalidade entre os atores que pertencem ao universo agro não é boa para ninguém. Os agricultores familiares são a grande vítima de um debate feito de forma tortuosa. Não vejo grandes vantagens nessa discussão, a não ser para quem está fazendo uso político disso", acrescenta.
Ainda que não seja um exemplo citado pelo docente da FGV, não é difícil perceber que esse uso político se encaixa na forma como é gerido o Programa de Aquisição de Alimentos, relançado pelo governo Lula, e que tem um histórico de favorecimentos e fraudes.
Pelo PAA, o governo ganha uma licença para comprar alimentos, sem licitação, de organizações ligadas ao MST e outros movimentos sociais, que não costumam se destacar pela eficiência econômica da produção, marcada por baixas produtividades e o uso deficiente de tecnologias.
Em paralelo, líderes do MST têm sido nomeados pelo presidente Lula como gestores da Conab, que neste ano tem orçamento de R$ 1,5 bilhão e que comandará as compras.
“Vamos ter que ficar muito atentos, por que isso foi terrível no passado, e quem desmontou foi o Michel Temer [presidente entre 2016 e 2018]. Havia uma rede de apoio que custava aproximadamente R$ 1 bilhão, que era distribuída para esses grupos e alimentava essa máquina de invasores de terra”, alertou o ex-presidente do Incra Xico Graziano, em entrevista à Gazeta do Povo.
Estatística inflada é ruim para os agricultores familiares
O conceito de agricultura familiar, pela legislação brasileira, tem mais a ver com o tamanho da propriedade – até quatro módulos fiscais – do que com o negócio ser ou não administrado por pais e filhos. Calixto Rosa Neto, estudioso de administração e mercadologia da Embrapa Rondônia, prefere falar em pequeno produtor, em vez de agricultor familiar.
“Acho que esse negócio de 70% é até ruim, porque as pessoas podem dizer que a agricultura familiar então está muito bem, e isso não é verdade. Ela sofre muito, por vezes não tem acesso a crédito e aos mercados. Isso mascara a realidade, é uma questão um pouco distorcida no Brasil. Nos Estados Unidos, independentemente do tamanho, se a propriedade é tocada por pai, mãe e filhos, é uma propriedade familiar”, observa Rosa Neto.
Na mesma linha, Serigati, da FGV, diz que o tamanho das propriedades, com maior ou menor escala, não deveria ser motivo para divisionismo. “Isso não envolve julgamento moral. Para propriedades com dimensão menor, em geral, o tipo de produção que traz maior retorno é diferente do que se você tivesse escala maior. Simples assim. Você não tem grandes escalas ao plantar verduras, mas tem grandes escalas ao cultivar algodão, soja e milho. É apenas uma característica física”, sublinha Serigati.
Um outro equívoco seria tentar diminuir a importância, para a segurança alimentar, das commodities de exportação, como soja, milho, algodão ou açúcar.
“Quando se fala de soja, ela está presente em vários outros alimentos, no óleo, no suíno, no bovino, no peixe. Ela é base da ração para esse tipo de rebanho. Você não se alimenta de soja de uma maneira geral, mas indiretamente ela entra na alimentação. Com o milho é a mesma coisa. O frango é um milho com asa: 73% do frango é milho”, diz o pesquisador da Embrapa.
Políticas públicas necessárias, para grandes e pequenos
Naturalmente, as políticas públicas buscam atender aos que têm maior necessidade. Em relação à agricultura familiar, pode ser o crédito mais subsidiado para um pequeno produtor ou ajuda para contratação do seguro rural. Para produtores de maior porte, por vezes a necessidade está em um maior envolvimento do Itamaraty e dos adidos comerciais no esforço para abrir novos mercados.
“Ambos são legítimos, ambos fazem bem para o país. As cadeias em que esses agentes estão inseridos não são tão diferentes. Quando vão comprar insumos, ambos sentem os mesmos choques. Se o fertilizante ficou caro para um, ficou caro para o outro também. Se a hora de trabalho do tratorista ficou mais cara, vale para o pequenininho como para o grande”, pondera Serigati.
Ele destaca que só o tamanho da propriedade não define, necessariamente, o perfil socioeconômico do produtor. O circuito de frutas do interior de São Paulo, por exemplo, tem pequenas propriedades com renda bem acima da média rural.
Por outro lado, há um grande contingente de pequenos produtores, ou de moradores de propriedades rurais, que não conseguem retirar seu sustento da agricultura. Em um artigo de 2010, o pesquisador Eliseu Alves, um dos fundadores da Embrapa, já perguntava se seria possível “ganhar tempo” em relação a um novo êxodo rural. Ele concluiu que para 3,7 milhões de estabelecimentos, metade no Nordeste, “na agricultura, simplesmente não há solução para o problema de pobreza deles”.
A saída seria, então, além da complementação de renda (Bolsa Família, aposentadoria rural, Bolsa Escola, etc), estimular a capacidade do agronegócio de gerar empregos temporários, “de modo que as cidades adquiram capacidade para abrigar parte desta população”.
Agro tem dinamizado setor de serviços no interior
Ainda que o número de propriedades da agricultura familiar siga em declínio – caiu 9,5% entre os censos de 2006 e 2017 –, o “universo agro”, como define Serigati, tem dinamizado nos últimos anos a economia das regiões em que é a atividade predominante. E a renda gerada acaba por aquecer o setor de serviços local.
“Temos a formação de uma classe média derivada do setor de serviços que foi dinamizado justamente por esse universo agro”, diz.
O resultado tem sido geração de mais empregos onde o agro é dominante, como no Centro-Oeste, e retenção dos moradores rurais. Além disso, ocorre um movimento inverso, de atração de pessoas dos centros urbanos em busca de novas oportunidades e mais qualidade de vida.
“Lembro de um pequeno produtor de algodão de Guanambi, no interior da Bahia, que quebrou por causa da praga do bicudo. Ele estava como garçom em um hotel. Perguntei o que ele preferia. No campo, ele colhia algodão com a mão, era pequenininho, não tinha escala. Não dava para se sustentar nesse mercado. Então, ele preferia trabalhar no hotel, onde tinha emprego, décimo-terceiro, férias e uma qualidade de vida maior”, relata o professor da FGV.
Ministério do Desenvolvimento Agrário defende números
Contatado pela Gazeta do Povo para comentar os números “inflacionados” da produção da agricultura familiar, o Ministério do Desenvolvimento Agrário enviou nota afirmando que, “com base nos dados do Censo Agropecuário de 2006, 70% dos itens da cesta básica brasileira eram produzidos em maior parte pela agricultura familiar, como o feijão (71% do volume produzido e 70% do valor), e outros produtos como a mandioca chegavam a alcançar 87%”.
O Ministério também enviou uma extensa lista de hortifrútis com grande percentual de agricultura familiar em sua produção. Dentre eles, cebola (58%), abobrinha (77%), alface (64%), chuchu (70%), tomate (45%) e mandioca (70%).
Em relação ao feijão, os dados do MDR estão defasados. O Censo de 2017 aponta que a agricultura familiar produz, na média ponderada, 23,1% de todo o feijão cultivado no país, e não 71%. Quanto ao arroz, a produção familiar corresponde a apenas 10,9%. A participação é maior na cadeia do leite (64,2%), que tem o diferencial de gerar renda contínua nas pequenas propriedades, fugindo das sazonalidades de outras culturas. No setor avícola, a participação é de 45,5%, devido à elevada contribuição das cooperativas, que reúnem em sua maioria pequenos e médios produtores.
Em seu artigo pioneiro questionando os percentuais superestimados de produção da agricultura familiar, Rodolfo Hoffmann sublinhou que era “praticamente impossível avaliar, com precisão razoável, qual é a parcela da matéria-prima usada na produção dos alimentos consumidos no Brasil que se origina da produção da agricultura familiar”.
“Seria necessário analisar, pormenorizadamente, os canais de comercialização de todos os alimentos e das respectivas matérias-primas”, apontou.
Pesquisadores da Embrapa Rondônia decidiram fazer um levantamento focado na produção primária agrícola e pecuária, sem entrar no mérito de produção de alimentos. Fizeram um recorte de 65 produtos agrícolas, abrangendo não só hortifrútis (que turbinam as estatísticas da agricultura familiar), mas também grãos, cana-de-açúcar e espécies frutíferas.
“No conjunto desses 65 produtos, a participação da agricultura familiar foi de apenas 5,7%. Quando se exclui, desta cesta, a soja, o milho, o trigo e a cana-de-açúcar, que são culturas industriais cultivadas em médias e grandes áreas, a participação da agricultura familiar alcançou 30% do total produzido, em toneladas”, avaliou o grupo de pesquisadores.
A Gazeta do Povo entrou em contato com Hoffmann, da USP, para contextualizar a nota técnica de quase dez anos atrás, que desmentia o percentual de 70% atribuído à agricultura familiar na produção de alimentos. Em férias, Hoffmann não deixou de responder, mas foi bem objetivo: “A agricultura familiar é importante. O conteúdo de minha nota criticando os 70% continua válido”.
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