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Presidente Bolsonaro discute investimentos no Brasil, em 2019, com Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro do Reino da Arábia Saudita
Presidente Bolsonaro discute investimentos no Brasil, em 2019, com Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro do Reino da Arábia Saudita| Foto: José Dias / Presidência da República

Importador de 80% dos alimentos que consome, a Arábia Saudita executa desde 2016 o plano estratégico Visão 2030, que busca fazer uma transição econômica organizada e suave para a era pós-petróleo. A ordem é diversificar os pilares da economia, espalhando investimentos pelo globo, e ao mesmo tempo maximizar medidas de segurança alimentar para a população do deserto. Sem estardalhaço, usando a força dos petrodólares, os sauditas atualmente detêm um terço das ações do frigorífico Minerva Foods – maior exportador de carne bovina do Brasil – e também têm participações na BRF, maior exportadora de frango do mundo.

À exemplo da Arábia Saudita, outras nações petróleo-dependentes do Oriente Médio, como Catar, Mauritânia, Omã e Argélia, separaram ao longo dos anos uma “poupança para o futuro”. É dinheiro que busca oportunidades globais, não só na produção de alimentos, mas também nos setores de logística, energias renováveis e infraestrutura. As reservas alocadas em fundos soberanos da Liga Árabe alcançam hoje US$ 2,3 trilhões, ou 40% do capital mundial alocado em fundos deste tipo.

No Brasil, a parceria mais recente se deu no mês passado entre o Fundo Soberano da Arábia Saudita (Salic) com a BRF e envolve investimento de US$ 500 milhões em terras orientais. Na prática, os árabes querem apoio dos sócios brasileiros para aprimorar a produção de frango de alta qualidade, ainda que em pleno deserto. Em outra ponta, também em outubro, o mesmo fundo Salic, associado a outra gigante brasileira do setor de proteína animal, a Minerva Foods, comprou o maior abatedouro de cordeiros da Austrália – o Australian Lamb Company (ALB), por R$ 1,3 bilhão. Desde 2015, o Salic é o maior acionista individual da Minerva Foods, com 33,8%.

Sauditas têm dinheiro "carimbado" para vir ao Brasil

Em teoria, a Arábia Saudita já tem separados US$ 10 bilhões para investir no Brasil. Esse foi o montante anunciado em 2019 durante encontro do presidente Bolsonaro com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, em Riad. Como resultado daquela viagem os dois países criaram um Comitê Interministerial para a Promoção do Comércio e dos Investimentos, coordenado pela Casa Civil. Segundo nota do Itamaraty, desde então o governo brasileiro apresentou “extenso portfólio de projetos que administra nos setores de infraestrutura, saneamento e energia e sinalizou ao PIF (fundo saudita) a disposição em contribuir para a formação de consórcios, o que poderia possibilitar a participação do PIF em projetos prioritários”. Até agora, segundo o governo brasileiro, os sauditas teriam feito inversões de US$ 400 milhões em fundos administrados por parceiros privados. Restam, portanto, US$ 9,6 bilhões a serem aportados.

Negociar com os sauditas o destino desses recursos não é tarefa fácil. Eles já foram um dos maiores importadores globais de frango, mas hoje apostam em mais autossuficiência. “É um país mais fechado, mais desafiador numa negociação comercial do que os Emirados Árabes, a Argélia, o Líbano ou o Egito”, aponta Leonardo Alencar, head de Agroalimentos e Bebidas da XP Investimentos. “A Arábia Saudita muitas vezes exige que você faça investimento local, como é o caso da joint-venture com a BRF. Negociar com eles nunca é apenas uma discussão econômica ou business. Sempre envolve questões políticas. Os investimentos do fundo soberano são conduzidos pelo próprio governo, então, ocorre este alinhamento com o governo”, completa.

Omar Chohfi, presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, lembra que depois de vários governos árabes terem anunciado suas respectivas Visões 2030, ou seja, planos de transição econômica para a era pós-petróleo, a “atuação desses fundos incluiu, além da segurança alimentar, a prioridade de estimular a estruturação das cadeias produtivas inclusive de alimentos, nos países árabes.” É nesse contexto que entra a parceria com a BRF para produzir alimentos em território saudita, mirando não só o mercado doméstico, mas outras populações islâmicas vizinhas.

Fábrica da BRF em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos - Divulgação BRF
Fábrica da BRF em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos - Divulgação BRF

Com guerra na Ucrânia, Brasil voltou a ser estratégico

No meio do caminho para a almejada autossuficiência saudita na avicultura veio a pandemia e, depois, a guerra da Ucrânia. O país do Leste Europeu era um dos principais fornecedores da carne de frango para os sauditas. “O Brasil voltou a ser muito estratégico para eles. Em relação a custos de produção, o Brasil continuará sendo muito competitivo, salvo quando eles colocam taxas de importação. É um país muito protecionista que, nesse projeto de se tornar autossuficiente, tem enfrentado desafios muito grandes. Então, entrar na Arábia Saudita não é uma decisão tão simples. Não é apenas decisão de alocação da produção. Eles exigem investimentos”, ressalta Alencar, da XP.

Uma fonte do setor de comércio árabe informou que não foi por acaso que todas as plantas da Seara, que pertence à JBS, foram desabilitadas de exportar para a Arábia Saudita. “Eles são grandes mercados consumidores e têm usado isso para pressionar as empresas para uma relação mais recíproca. Eles forçaram sucessivas desabilitações de frigoríficos no Brasil até que a BRF concordou em anunciar dois investimentos de cerca de US$ 100 milhões lá na Arábia. A Seara não teve a mesma disposição e acabou saindo do mercado saudita”, relata.

 Complexo de produção de frangos em Vinnytsia, Ucrânia, da empresa MHP, é um dos maiores do Leste Europeu (Divulgação/MHP)
Complexo de produção de frangos em Vinnytsia, Ucrânia, da empresa MHP, é um dos maiores do Leste Europeu (Divulgação/MHP)| Mardal

Segundo um levantamento da Rede Nacional de Informações sobre Investimento (Renai), entre 2004 e 2019 os árabes investiram US$ 13,71 bilhões no Brasil em projetos nas áreas de manufatura, transporte, logística, indústria automotiva, hotelaria, indústria extrativista e alimentos. Os investimentos vieram principalmente de fundos da Argélia (US$ 3,57 bilhões), seguido pelo Bahrein (US$ 3,40 bilhões), Egito (US$ 3 bilhões), Arábia Saudita (US$ 1,69 bilhão), Emirados Árabes (US$ 1,44 bilhão) e Líbano (US$ 640 milhões).

Ferrogrão foi apresentada aos sauditas, mas tem entraves ambientais

Uma das oportunidades de investimento, e prioridade no setor de infraestrutura brasileira, já apresentadas aos sauditas é a Ferrogrão, ferrovia de 933km ligando Sinop, no Mato Grosso, a Miritituba, no Pará. Os representantes do fundo soberano saudita conheceram o projeto em 2020, mas, desde então, não houve avanços. O projeto da estrada de ferro ligando o coração do agronegócio brasileiro ao Arco Norte está parado atualmente no Supremo Tribunal Federal, por conta de uma liminar envolvendo questionamentos sobre alteração dos limites da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, prevista pela obra. O fato de cortar o bioma amazônico, com toda a sensibilidade que envolve o tema, também tem diminuído o interesse de grandes investidores na ferrovia.

Em movimentos mais recentes, o maior fundo de investimentos árabe, o Mubadala, de Abu Dhabi, investiu R$ 1,8 bilhão para assumir em novembro de 2021 as operações do Metrô Rio e do Metrô Barra, em troca de dívidas por ações nestas concessionárias. Também na mesma época acertou por R$ 1,7 bilhão a compra da refinaria Landulpho Alves (Rlam), a primeira construída no país e primeira a ser privatizada pela Petrobras. Mais recentemente ainda, segundo o jornal Valor, o Mubadala entrou na disputa com a Raízen para adquirir a BP Bunge Bioenergia, que controla 11 usinas de açúcar e etanol no país, com receita operacional líquida anual de R$ 7,2 bilhões. Antes, em setembro, tentou sem sucesso uma proposta para assumir o controle do Burger King no Brasil, do qual já é sócio com 5% das ações.

Houve recuos também, e o Mubadala contratou no início deste ano o banco de investimentos BTG Pactual como consultor para se desfazer da rodovia Rota das Bandeiras, em São Paulo, em um negócio que pode alcançar R$ 4 bilhões.

Grande interesse em alianças de capital misto em alimentos

Nos países que compõem a Liga Árabe vivem atualmente 420 milhões de pessoas. Garantir a segurança alimentar dessa população é um objetivo estratégico de todos os fundos soberanos, aponta Tamer Mansour, secretário-geral da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira. “É uma região carente de solos aráveis e de água, com grandes taxas de natalidade. No Brasil, há interesse em três áreas centrais: segurança alimentar, logística e infraestrutura. Há muito interesse em estruturar alianças de capital misto em empresas de alimentos, a exemplo da bem-sucedida parceria entre o fundo saudita Salic e o frigorífico Minerva, e também em aportar recursos em concessões e infraestrutura que facilitem o acesso a alimentos”, destaca Mansour.

Ele confirma que os árabes também querem levar para seus territórios todo tipo de investimento, e, para tanto, mantêm políticas de criação de zonas francas, com incentivos tributários, logísticos e de infraestrutura, “muitas delas conjugadas com polos de pesquisa tecnológica, caso da Zona Franca de Suez, no Egito, e de Sarja, nos Emirados Árabes, todas financiadas por esses fundos”.

Seja no setor de alimentos, refino de petróleo, logística, infraestrutura ou grifes de luxo, estúdio de cinema e até times de futebol, o dinheiro dos petrodólares está constantemente buscando negócios para diversificar seu portifólio. E, em praticamente todos os casos, um aspecto da cultura islâmica predomina, segundo Mansour. “Esses fundos têm como característica a preferência por atividades produtivas. Eles não querem só ser sócios no negócio, querem participar da produção. É preciso lembrar que na cultura islâmica cobrar juros é proibido. A ideia de investir está fortemente associada à compartilhar os resultados de uma atividade produtiva. Então é preciso um bom projeto produtivo, que faça sentido nos objetivos estratégicos dos fundos e dos países árabes por eles responsáveis”.

Gado nelore em fazenda de Campo Novo do Parecis (MS)
Gado nelore em fazenda de Campo Novo do Parecis (MS)| Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo

Investimentos não mudam perfil de mercado das empresas-alvo

Ainda que muitos dos investimentos árabes tenham como pano de fundo estratégias nacionais de segurança alimentar, isso pouco tem interferido no dia a dia das empresas associadas. Em outras palavras, não quer dizer que por ser sócio do frigorífico Minerva, o fundo soberano da Arábia Saudita esteja enviando mais carne para o próprio país. “Numa questão mais crítica de oferta de alimento global, e preços mais altos, essa participação acionária poderá ter um poder de decisão mais forte. Mas por enquanto tem sido investimentos financeiros no setor de alimentos, que não mudam o perfil da empresa onde foi feito o investimento. Nunca vi acontecer de, por ter participação acionária, uma empresa obrigar o fornecimento a determinado país, mesmo que não seja a melhor decisão econômica. De repente o melhor preço não é da Arábia Saudita, mas você é obrigado a exportar para lá, por uma questão de segurança alimentar, porque o sócio obrigou esse processo. Nunca vi acontecer e não acredito que aconteça a curto prazo” observa Leonardo Alencar, da XP.

Necessidade de mais acordos comerciais com países árabes

O que falta para azeitar ainda mais as relações comerciais e a atração de investimentos árabes no Brasil? O Itamaraty informou que para incentivar investimentos de lado a lado, Brasil e Arábia Saudita estão negociando um Acordo para Eliminar a Bitributação (ADT), bem como um Acordo de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFI). Mansour, da Câmara Árabe-Brasileira, aponta para a importância de avançar com acordos comerciais que atualmente estão parados, como entre o Mercosul e Líbano, Jordânia e o Conselho de Cooperação do Golfo. “O entendimento entre o Mercosul e o conselho de Cooperação do Golfo, por exemplo, está parado por sensibilidades da indústria petroquímica do Brasil, receosa da competição com os árabes no setor. Há acordos que já foram negociados, caso do Mercosul-Líbano, mas aguardam a ação dos parlamentos de cada país”, sublinha.

Em julho, em vídeo enviado para o Fórum Econômico Brasil-Países Árabes, o presidente Jair Bolsonaro destacou que os fundos árabes já investem US$ 20 bilhões no Brasil e que a ideia era estimular a vinda de mais capital. “É nosso objetivo concluir com os países árabes acordos de facilitação de investimentos que evitem a dupla tributação”, disse em referência ao fato de o Brasil só ter acordo desse tipo na Liga Árabe com os Emirados Árabes e com o Marrocos. Na ocasião, o presidente prometeu também empenho para buscar mais acordos de livre comércio com a região, além do Mercosul-Egito, o único em vigor. As negociações já teriam sido abertas nesse sentido com os Emirados Árabes.

A intenção de Bolsonaro era receber, ainda neste ano, em Brasília, a visita do príncipe-herdeiro da Arábia Saudita, o emir do Catar, o rei do Bahrein e o novo presidente dos Emirados Árabes. O calendário político, com iminente troca de governo, contudo, pode ter arrefecido os ânimos para visitação.

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