A decisão do governo Lula de gastar R$ 7 bilhões para comprar arroz no mercado internacional, rotular com marca própria e despejar no mercado interno vai acabar entrando para a história como um manual sobre “como fazer tudo errado na política agrícola de um país”, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) marcou o primeiro leilão para quinta-feira (6).
“Se for pensar numa jogada em que tudo está errado, é exatamente essa do governo. Vai prejudicar os produtores, o Sul, o país, vai desorganizar o mercado e aumentar os preços. Mas a agricultura se vinga no ano seguinte. O pior é o desestímulo que vai causar para o plantio da próxima safra”, avalia Antônio Cabrera, produtor rural e ex-ministro da Agricultura.
A semana do primeiro leilão começou com a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) entrando com Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a intervenção estatal.
A CNA argumenta que a importação vai afetar uma cadeia produtiva “ com potencial de desestruturá-la, criando instabilidade de preços, prejudicando produtores locais de arroz, desconsiderando os grãos já colhidos e armazenados, e, ainda, comprometendo as economias de produtores rurais que hoje já sofrem com a tragédia e com os impactos das enchentes”.
Outra reação veio de parlamentares do partido Novo, que ingressaram com representação junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo a anulação do aviso de compra de 300 mil toneladas pela Conab, citando nota oficial do governo gaúcho que nega qualquer risco de desabastecimento do produto.
Repetição de erros do passado
Para analistas do mercado, a ação intervencionista revela que o governo Lula pouco aprendeu com as lições de fracassos passados. No fim dos anos 1980, relembra o ex-ministro Cabrera, a propaganda da campanha de Fernando Collor à presidência explorava justamente as imagens de arroz apodrecendo nos armazéns estatais da Conab. E ainda havia uma herança de 100 mil toneladas de carne importada, contaminada pelo acidente nuclear de Chernobyl.
“O resultado foi catastrófico. Tomamos a decisão de que o governo não iria mais importar alimentos e que tal iniciativa, se necessária, seria tomada pela iniciativa privada”, relata o ex-ministro. “A partir de Collor, o governo não teve mais estoques públicos e esse foi um dos motivos para o agro ter se tornado o que é hoje”, avalia.
Ao longo dos anos, a cultura intervencionista de diferentes governos acabou fazendo com que muitos produtores se refugiassem nas commodities de exportação, fugindo do patrulhamento e da imposição de preços de itens da cesta básica. Cesta básica que, ironicamente, o governo Lula adota como bandeira política e diz apoiar.
“Muita gente já não vai plantar mais arroz, porque se sentiu inseguro. Se for para cometer um erro, vamos tentar cometer um erro novo. Mas o governo está repetindo, e isso, desculpa a expressão um pouco forte, é uma estupidez”, diz Cabrera.
Compra de arroz com marca do governo: abuso político
Outro aspecto que chama atenção, e tão grave quanto o intervencionismo, seria o componente demagógico e populista da medida, em ano de eleições. “Nunca vi um abuso político como esse. O governo vender arroz no mercado, embalado com marca própria, às vésperas de uma eleição, é algo inacreditável. Eu diria que um TSE [Tribunal Superior Eleitoral] sério deveria dar 24h para o governo se explicar”, enfatiza o ex-ministro da Agricultura.
Na mesma linha já argumentou o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PL-PR), que foi taxativo: "Vender arroz com a marca do governo federal é abuso de poder político".
O viés eleitoreiro da medida do governo petista tem todos os elementos de uma ação caricata de “ditadura subdesenvolvida de terceira categoria”, conforme o colunista da Gazeta do Povo J.R. Guzzo, que apelidou a iniciativa de "Arrozbras lulista".
Para justificar a intervenção, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e o presidente da Conab, Edegar Pretto, têm afirmado que houve aumento de 30% a 40% no preço do arroz no último mês. Um estudo da Cogo Inteligência em Agronegócios, contudo, desmente essas afirmações com dados da própria Conab.
Alta do arroz estaria ligada à Índia, não ao RS
Entre a semana dos dias 29 de abril a 3 de maio, antes das enchentes, e a última semana de maio, o preço médio do arroz longo fino no atacado em São Paulo subiu de R$ 166,60 para R$ 178,40 por fardo de 30 kg, uma alta de 7,1%. Já o preço do arroz em casca ao produtor do Rio Grande do Sul, em sacos de 50 kg, na mesma base de comparação, subiu de R$ 104,27 para R$ 117,70, alta de 12,9%.
O preço do arroz já estava num patamar elevado antes das enchentes e tinha a ver com a Índia, maior exportador mundial, que em julho de 2023 barrou os embarques após uma seca e provocou altas no mundo todo.
Desde então, o arroz beneficiado da Tailândia – um dos principais exportadores asiáticos – subiu de US$ 453 a tonelada FOB para os atuais US$ 664 a tonelada, alta de 46,5%. No Paraguai, principal fornecedor de arroz para o Brasil, o arroz beneficiado tipo 1 subiu de US$ 473 a tonelada FOB para US$ 810 a tonelada, alta de 71,2%.
Pela dinâmica do mercado, os preços do arroz no Brasil e no Mercosul são balizados pela paridade internacional e tendem a seguir essas altas externas, com maior ou menor intensidade.
“É inverídico que os preços do arroz subiram de 30% a 40% no Brasil. Conforme dados da própria Conab, o preço do arroz ao consumidor subiu 25,6% desde julho do ano passado, bem abaixo, portanto, das altas ocorridas na esfera internacional”, diz o estudo da Cogo Consultoria. Altas especulativas, pontuais, em um ou outro varejista ou região, não mudariam o cenário principal e mais amplo.
Vizinhos do Mercosul não devem participar do leilão do governo
Ainda é possível que o governo desista de realizar o leilão de quinta-feira – seja por perceber o desperdício de recursos e os efeitos prejudiciais para a cadeia produtiva, seja para evitar um fiasco de o certame resultar deserto, sem interessados.
Ouvido pela reportagem da Gazeta do Povo, o analista Carlos Cogo antecipa que traders e exportadores vizinhos do Mercosul sinalizaram que não têm interesse no leilão. Além de terem pouco cereal disponível, o leilão faz várias exigências – arroz tipo 1, safra 2023/24, embalagem, logomarca, local de entrega – que podem dificultar a operação.
“O governo deve estar buscando em outras origens, provavelmente na Tailândia ou no Vietnã. É possível que não consigam comprar, e uma das coisas que aponta para isso é o fato de terem reservado 20 milhões de reais para os técnicos do governo viajarem para descobrir onde buscar. Isso mostra falta de expertise, porque hoje no mercado de commodities agrícolas você não precisa sair da cadeira para comprar os produtos. Parece que estão meio perdidos”, avalia Cogo, que foi servidor da Conab no início da carreira.
Uma medida mais eficiente, defende Cogo, seria aportar recursos para a ferramenta de prêmio para escoamento da produção (PEP), que ajudaria a custear o frete e levar o arroz gaúcho a regiões mais distantes ou, eventualmente, desabastecidas.
"Com 200 milhões de reais resolveria o problema do mercado desse ano, gastando muito pouco dinheiro público e não comprometendo a safra do ano que vem", enfatiza. A exemplo do ex-ministro da Agricultura, o analista também condena a sanha intervencionista e vê péssimos desdobramentos, já em curto prazo.
Área plantada de arroz iria subir, agora pode cair
Havia estimativa de aumento de 8% a 10% na área plantada com arroz no Rio Grande do Sul no próximo ciclo, mas isso agora entrou “em banho-maria”. Na prática, o recado do governo é de que ele quer controlar artificialmente os preços e rebaixar a rentabilidade dos produtores.
“Quem vai plantar arroz sabendo que o governo vai despejar depois um produto subsidiado com preço controlado? Ele quer estimular o arroz, mas se os preços subirem, vai entrar no mercado e derrubar o preço, é isso?”, indaga Cogo. “É um erro histórico. Nós vamos contar para as próximas gerações esse erro, é daqueles que entram para o manual sobre o que não fazer numa economia de política agrícola no país”, sublinha.
Outro analista do mercado de arroz, Vlamir Brandalizze, pondera que a principal região produtora gaúcha, do Oeste do estado, está com as ligações normalizadas com o resto do país e o escoamento de arroz segue sem maiores obstáculos. O alarme tocado pelo governo, contudo, de que poderia vir a faltar o cereal, acabou provocando uma corrida aos supermercados. O volume de arroz vendido em maio saltou de uma média histórica de 900 mil toneladas para perto de 1,5 milhão.
“O consumidor não vai comer mais arroz só porque comprou mais. Então, nos meses de junho e julho as indústrias já esperam vender menos, o que vai deixar o mercado uns três a quatro meses mais barato. Isso pode até causar uma paradeira e desemprego, se o governo entrar com mais oferta e a indústria não estiver vendendo em agosto também. Esse arroz do governo vai entrar numa hora em que o mercado já vai estar muito fraco”, prevê Brandalizze.
Antes das medidas intervencionistas, as perspectivas para o setor arrozeiro do país eram positivas, com tendência de expansão de área e ganho de mercados internacionais, desabastecidos pela Ásia. No ano passado, pela primeira vez o preço da saca do cereal superou o da saca de soja. Agora, na hora de planejar a próxima safra, além de considerar fatores climáticos, custos dos insumos e cotações internacionais, o produtor de arroz precisará colocar na balança o impacto da Arrozbras de Lula.
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