Até duas semanas atrás, os registros da chegada da gripe aviária H5N1 ao continente sul-americano pipocavam do lado de lá da Cordilheira dos Andes e da Floresta Amazônica. Mas essas barreiras naturais contra a disseminação do vírus por aves migratórias já não contam.
O H5N1 desembarcou em vizinhos bem mais próximos do que Chile, Equador e Peru. No último dia 15, Argentina e Uruguai decretaram emergência nacional de saúde após a confirmação de casos da doença em aves silvestres e de criações domésticas. Desde então, a situação piorou na Argentina, que já contabiliza 25 focos e nesta semana confirmou a presença do vírus numa granja comercial no município de Mainque, na província de Rio Negro. Até aqui, não há comprovação científica de que a doença seja contagiosa entre humanos, apesar da alta letalidade nos casos de contato próximo e sem proteção com aves infectadas.
De imediato, a Argentina perdeu temporariamente o status de área livre da doença e suspendeu de forma voluntária as exportações de produtos avícolas. A luta, agora, é para extirpar rapidamente o foco - com sacrifício de todas as aves do lote e de 10 km de distância. Em paralelo, uma corrida para negociar a reabertura das exportações e recuperar a condição de área livre.
Ainda que os protocolos de enfrentamento da doença sejam os mesmos, o impacto econômico da gripe aviária na Argentina não se compara ao dano potencial ao Brasil. Enquanto os argentinos exportam 190 mil toneladas de frango por ano, o Brasil embarca o dobro disso por mês. É o maior exportador global, com 33% de todo o comércio entre países, alcançando receita de US$ 9,76 bilhões. Somadas as exportações de ovos, os valores sobem para US$ 13 bilhões. São 4 milhões de empregos diretos e indiretos.
Brasil pode ser um dos últimos atingidos pelo vírus
Uma vantagem relativa do Brasil em relação à doença é que ela chegou primeiro aos principais competidores, no hemisfério Norte. Os EUA, segundo maior exportador global, conseguiu controlar os focos e "convive" com o vírus, sem perder os clientes internacionais. É o que o Brasil também espera fazer.
“Estamos trabalhando há mais de três anos nos mercados que são nossos clientes. De 150 países, podemos ter problema em dez ou quinze, caso haja um foco da doença em granja comercial. Mas a maioria, como a China e os países da Europa, já impõem restrições apenas num raio de 10 quilômetros de um foco. No restante, quando ocorre em aves silvestres ou de fundo de quintal, não para o comércio. Prova disso é que o Japão continua importando da Europa e dos Estados Unidos, que registram vários focos da doença”, afirma Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).
Ainda que os efeitos possam possam ser atenuados por medidas sanitárias rigorosas e novos arranjos comerciais, no curtíssimo prazo há quem veja o potencial de danos semelhantes ao de uma Operação Carne Fraca ou paralisação de caminhoneiros. "Se ficarmos três dias sem exportar já é o caos. Já vimos isso na operação Carne Fraca. É que não temos grande capacidade de estocagem nos frigoríficos. E não dá para deixar nas câmaras frias esperando a retomada da exportação", diz uma fonte da cadeia produtiva do Paraná, que responde por 35% da produção nacional. Diferente do gado de corte, que pode aguardar no pasto, não é possível manter os frangos nos aviários indefinidamente. O giro dos lotes é quase mensal.
Falta de estocagem cria problema de curto prazo
"Não adianta dizer que vai guardar o produto, porque não tem estocagem, não tem onde guardar. Na região em que acontecer o foco tem que parar de alojar imediatamente, tirar os ovos das máquinas e tentar vender no mercado interno. Só que o preço vai ser de graça. E depois de 38 a 40 dias, também não tem mais", afirma um empresário do ramo, em off. Por outro lado, diz o avicultor, um plano de contingência deve ter rápida adesão dos clientes internacionais, "porque eles vão ficar sem opção, não vão ter onde buscar o produto".
Na avaliação de Santin, da ABPA, o mundo já aprendeu a conviver com a gripe aviária. “O problema é morrer muitas aves e não ter comida. Não ter nem carne nem ovo. Mas o Brasil está preparado para, se houver um foco, debelar imediatamente”, assegura.
Pelas regras da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), teoricamente, um país que nunca teve influenza aviária pode recuperar o status de área livre em 28 dias, caso adote todas as medidas para eliminar o vírus – sacrifício do lote de aves infectadas, desinfecção do estabelecimento e sacrifício preventivo de criações num raio próximo. As negociações de comércio, contudo, ocorrem de forma bilateral.
Ovos e carne podem ser consumidos com segurança
Seja em relação ao novo vírus, ou uma velha ameaça, como a salmonella, os mecanismos de controle de biossegurança na cadeia avícola brasileira asseguram baixíssimo risco de alimentos contaminados chegarem à mesa dos consumidores. Mesmo que isso ocorra, a manipulação correta e o cozimento de ovos e da carne são efetivos para eliminar os vírus e bactérias.
O fato de o vírus estar se disseminando, contudo, tem preocupado a comunidade científica. Em janeiro, o sinal de alerta se acendeu após o sacrifício sanitário de 50 mil visons (espécie aparentada de lontras e furões) numa fazenda da Espanha. Teme-se que os animais não tenham se infectado ao se alimentarem de aves contaminadas, mas que o vírus tenha conseguido passar de um mamífero para outro. Uma mutação como essa poderia ser um dos gatilhos para transformar a H5N1 numa nova pandemia mundial.
Estudos buscam entender o H5N1 entre mamíferos
“Alguns mamíferos, como o vison, podem atuar como incubadores de diferentes vírus de influenza, levando ao surgimento de novas cepas e subtipos com potencial de ser mais danosos aos animais e aos seres humanos. O surto numa fazenda de visons causa preocupação porque infectou um grande número de mamíferos mantidos muito próximos uns dos outros, o que exacerba esse risco”, diz nota da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). Vários estudos estão em andamento para melhor avaliar a virulência e a transmissibilidade desses vírus, inclusive entre mamíferos.
Na semana passada, as autoridades de saúde do Camboja confirmaram dois casos de infecção humana pelo H5N1, o que não acontecia no país desde 2014. Uma menina de 11 anos recebeu tratamento médico, mas não resistiu. O pai dela, também infectado, foi assintomático.
Não há, contudo, evidências de que a cepa H5N1 se transmita entre humanos, apesar da alta letalidade: 873 pessoas foram infectadas desde 2003, totalizando 458 mortes pela infecção em 21 países. Se o vírus fosse transmissível de uma pessoa para outra, haveria muito mais mortes, dada a rápida disseminação entre as aves. O mais provável é que os contágios tenham ocorrido pela manipulação de aves doentes ou contato com ambientes contaminados.
“As evidências epidemiológicas e virológicas sugerem que o vírus não adquiriu a habilidade de transmissão sustentável entre humanos, o que torna baixa a probabilidade de contágio de pessoa para pessoa. Como o vírus continua a ser detectado em criações de aves, devemos esperar mais casos de seres humanos infectados”, diz informe da Organização Mundial de Saúde de 26 de fevereiro.
Cadeia do frango intensificou testagens e segurança
O Ministério da Agricultura coordenou com as defesas sanitárias estaduais um plano de contingência para reagir a uma eventual chegada do vírus ao Brasil. A primeira medida será bloquear a área do foco, para, em seguida, tomar uma série de ações saneadoras num raio de 10 quilômetros da detecção. No momento, a ordem é intensificar a prevenção ativa, dos órgãos fiscalizadores, e passiva, que envolve a comunicação da doença por qualquer cidadão que perceba sintomas em aves comerciais, caseiras ou silvestres. Dentre os sintomas mais típicos, está o andar cambaleante, torcicolo, tremores, dificuldade respiratória e diarreia.
No ano passado, com o rápido aumento de casos no hemisfério Norte, somente os laboratórios federais de defesa agropecuária, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, processaram 34.205 análises de amostras de aves silvestres e de aves de subsistência criadas em locais próximos a sítios de aves migratórias. No Paraná, principal produtor de frango, foram feitas aproximadamente 15 mil análises.
As mortes suspeitas de aves têm notificação obrigatória e são atendidas pela defesa sanitária animal em no máximo 12 horas. Um criador só consegue autorização para alojar pintinhos se atender itens de biosseguridade como o cercamento dos galpões com telas antipássaros, a adoção de um sistema de desinfecção de veículos e pessoas, e a restrição de visitas.
“Agora é preciso que os produtores façam valer essas questões estruturais. De nada adianta o produtor ter um aviário com uma tela adequada, qualidade de água e desinfecção de veículos adequadas, se mantiver galpões abertos, por exemplo, para refrigerar os aviários, para economizar nos ventiladores e na nebulização. São procedimentos que o produtor tem que fazer todos os dias”, recomenda Rafael Gonçalves Dias, gerente de Saúde Animal da Secretaria da Agricultura (Seab-PR).
Aves migratórias estão indo embora, o que pode ajudar
Um alento, que pode dar sobrevida ao status brasileiro de "livre do H5N1", está no fato de que as aves migratórias, potenciais hospedeiras do vírus, estão levantando voo de retorno para o hemisfério Norte. Elas costumam ficar por aqui de novembro a abril. Isso, no entanto, não garante nada, uma vez que o vírus já aterrissou no continente, matando inclusive gansos e marrecos – que geralmente são mais resistentes à infecção.
"Em outros países, realmente no inverno reduz muito os surtos. Há uma esperança, mas é uma incógnita. Pode ser que ocorra uma infecção autóctone, porque aqui a maioria das aves não migra, já que tem alimento o ano todo", observa Luizinho Caron, pesquisador da Embrapa Aves, em Concórdia (SC), especializado em microbiologia, subárea de virologia.
Ainda que a chegada do vírus seja cada vez mais uma questão de "quando" e não de "se", os efeitos mais graves para a avicultura industrial, como ocorreu nos Estados Unidos e Europa, não devem se repetir por aqui. É a avaliação da analista do mercado de frangos do Cepea-Esalq/USP, Juliana Ferraz.
“Somos o maior player do mercado internacional de frango. A gente chegou a esse nível pela questão sanitária, temos um status sanitário muito bom. Pode gerar um crise de imagem pontual. Mas o mundo depende da proteína brasileira e não tem para onde correr. Um terço do que o mundo consome de carne de frango vem do Brasil. É muita carne”, diz a analista.
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