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Leilão de arroz foi um fiasco
Compras de arroz dispararam em maio por temor de desabastecimento| Foto: Daniel Castellano / Arquivo Gazeta do Povo

Apenas dez dias depois do início das inundações no Rio Grande do Sul, quando o cavalo caramelo ainda aguardava resgate em cima de um telhado na cidade de Canoas, em 7 de maio, o governo Lula anunciou que iria intervir no mercado e comprar 1 milhão de toneladas de arroz.

Toda a intervenção foi feita a partir de um “achismo” do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Naquele mesmo dia 7, ele afirmou: “Com as chuvas, acho que nós atrasamos de vez a colheita do Rio Grande do Sul. Portanto, se for o caso, para equilibrar a produção, a gente vai ter de importar arroz".

Era o início da crônica de um fiasco anunciado. Nos dias e semanas seguintes, de nada adiantaram todos os alertas de que praticamente a totalidade da colheita gaúcha de arroz, que abastece 70% do consumo nacional, estava segura, o que afastava qualquer risco de desabastecimento. A sucessão de erros, amadorismo e suspeitas de desvios e favorecimentos culminou com a anulação do leilão nesta terça-feira (11).

Governo Lula ignorou apelos do RS contra importação de arroz

Logo quando o governo começou a falar em importação estatal com preços subsidiados, entidades gaúchas ligadas à produção arrozeira emitiram uma nota à sociedade brasileira assegurando que o impacto das chuvas tinha reduzido em apenas 1,24% a colheita do cereal, que atingiu 7,15 milhões de toneladas, “inexistindo risco de desabastecimento de arroz ao mercado consumidor”.

A possível diminuição da disponibilidade do produto em função das perdas pela enchente seria “inevitavelmente compensada pelo incremento da importação e perda de competitividade do arroz brasileiro no mercado externo”.

Inundar o mercado doméstico com arroz de fora, subsidiado, seria, além de desperdício de dinheiro público, um desincentivo para a cadeia produtiva do cereal. O ex-ministro da Agricultura Antônio Cabrera foi taxativo: “Quem vai plantar arroz para a próxima safra, sabendo que o governo tem esse estoque de produtos e vai colocar no mercado de uma forma subsidiada e com preço artificial? Isso, sim, pode gerar uma grande crise de abastecimento de arroz no mercado nacional no próximo ano”, alertou.

Alarme e corrida aos supermercados

Nada, contudo, demoveu o governo Lula da determinação de gastar R$ 7 bilhões em arroz importado, subsidiado e rotulado com a marca do governo federal. Subindo o tom para justificar a medida populista, o presidente Lula afirmou em 10 de maio, durante visita a Alagoas, que estava “p*** da vida com os preços do arroz”. “O povo pobre não pode pagar R$ 33 num pacote de 5 kg de arroz”, esbravejou.

Simultaneamente à fala de Lula, o governo publicava naquele dia a Medida Provisória 1217/2024, que autorizava a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a importar até um milhão de toneladas de arroz beneficiado tipo 1, agulhinha.

Em vez de atuar para tranquilizar a população, Lula e seus ministros, com o anúncio da urgência da importação e repetidas declarações alarmantes sobre os preços do cereal, contribuíram para provocar uma corrida aos supermercados. A situação levou a Associação Brasileira dos Supermercados (Abras) a vir a público desmentir o risco de desabastecimento e pedir para as pessoas não estocarem, para não desequilibrar a demanda e a oferta. As vendas de arroz em maio, normalmente na faixa de 900 mil toneladas, saltaram para cerca de 1,5 milhão de toneladas.

A estocagem de arroz nos domicílios, somada à entrada de grandes volumes importados pelo governo, poderia causar “uma paradeira e desemprego na indústria nacional”, alertou à Gazeta do Povo o consultor de commodities agrícolas Vlamir Brandalizze.

“O arroz vai entrar numa hora em que o mercado vai estar muito fraco. O mercado brasileiro tem uma das maiores concorrências entre empresas, é muito aberto e eficiente. Se fizer uma avaliação, nos últimos três a quatro anos o nosso arroz sempre foi o mais barato do mundo. É um erro estratégico grande, vai tirar dinheiro da saúde e da educação para favorecer os 'amigos do rei'”, disse Brandalizze.

Primeiro leilão cancelado: governo culpou vizinhos do Mercosul

O primeiro leilão da Conab, para importar 104 mil toneladas de arroz, não saiu na data anunciada, 21 de maio. Às vésperas do pregão, a Conab cancelou a compra alegando que os países do Mercosul tinham elevado os preços do arroz em até 30% após o Brasil anunciar a importação. Em reação, o Ministério da Agricultura zerou a alíquota de importação de fora do bloco, que era de 10,8% para o grão beneficiado e polido.

Às vésperas da segunda tentativa de leilão, o Partido Novo chegou a conseguir decisão suspensiva no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que, contudo, foi cassada horas depois pelo presidente da corte.

Após bater o martelo para aquisição de 263 mil toneladas, os diretores da Conab comemoraram terem vencido oito batalhas nos tribunais, inclusive contra a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA). “Avaliamos que foi um sucesso esse primeiro leilão. Enquanto for preciso baratear o preço para os consumidores, nós vamos estar realizando os leilões”, afirmou o presidente da Conab, Edegar Pretto.

Enxurrada de suspeitas motiva pedido de CPI do "Arrozgate"

Horas depois da realização do certame, contudo, começaram a vir à tona a falta de habilitação técnica e experiência das empresas vencedoras – mercearia, locadora de carros e fábrica de sorvetes – assim como suspeitas de favorecimento a um ex-assessor do secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Neri Geller, que foi ministro da pasta no governo de Dilma Rousseff. As irregularidades levaram o deputado federal Luciano Zucco (PL-RS) a colher assinaturas para criação de uma CPI do "Arrozgate".

Das quatro empresas que venceram o leilão, três foram representadas pela Bolsa de Mercadorias de Mato Grosso (BMT) e pela Foco Corretora de Grãos, empresas criadas em maio do ano passado por Robson França, ex-assessor de Geller na Câmara Federal. As corretoras intermediaram a comercialização de 44% do volume de arroz negociado (116 mil toneladas), no valor de R$ 580 milhões. França também é sócio do filho de Geller em outra empresa, a GF Business, consultoria criada em agosto de 2023.

O diretor de Operações e Abastecimento da Conab, Thiago dos Santos, que coordenou o leilão, também foi assessor parlamentar do mandato de Neri Geller, tendo atuado ao lado de França no gabinete.

Neri Geller perdeu o cargo de secretário de Política Agrícola por suspeita de favorecimento de ex-assessor no leilão da Conab
Neri Geller perdeu o cargo de secretário de Política Agrícola por suspeita de favorecimento de ex-assessor no leilão da Conab| Marcelo Andrade / Arquivo Gazeta do Povo

Pressionado, Geller "entregou" o cargo

Cobrado a dar explicações, Neri Geller negou ter atuado para favorecer o ex-assessor, e afirmou desconhecer que ele estivesse participando da disputa. A situação de Geller ficou insustentável. “O secretário Neri Geller colocou o cargo à disposição e aceitei a demissão”, anunciou o ministro Carlos Fávaro.

Mas Geller apresentou outra versão. “Não pedi demissão”, afirmou em entrevista ao jornal O Globo. Mais cedo, o Globo Rural divulgou prints de uma troca de e-mails sobre a exoneração. Em uma das mensagens, Geller pede que o documento seja retificado para não ser publicado com a justificativa “a pedido”. A decisão ainda não foi publicada no Diário Oficial da União (DOU).

Oficialmente, a justificativa para a anulação do leilão da Conab foi a falta de comprovação de capacidade técnica e financeira das empresas para honrar os compromissos de operar R$ 1,3 bilhão em recursos públicos. A Conab tinha dado 24h para os vencedores apresentarem suas garantias, mas nem esperou o prazo terminar para anular o pregão.

Reportagem do jornal Zero Hora mostrou que duas das quatro empresas que arremataram lotes do certame tinham restrições no Registro e Rastreamento da Atuação dos Intervenientes Aduaneiros (Radar), sistema da Receita Federal que emite habilitações para operação no comércio exterior. Na prática, a ASR Locação de Veículos e Máquinas, de Brasília, e a Wisley A de Souza Ltda, cujo nome de fantasia é Queijo Minas, de Macapá (AP), não estavam habilitadas para importar bens no valor de dezenas de milhões de reais. Para mudar de enquadramento na Receita, as empresas teriam de demonstrar ter dinheiro disponível em contas bancárias ou aplicações.

Ao g1, a Wisley A de Souza Ltda afirmou que tem "mais de 17 anos de experiência no comércio atacadista, na armazenagem e na distribuição de produtos alimentícios" e que "teve um faturamento de mais de R$ 60 milhões em 2023". Já Crispiniano Espindola Wanderley, dono da locadora de veículos ASR, disse ao portal que a empresa tem "experiência em participar de leilões do governo federal através da bolsa, fomos ganhadores do leilão realizado pela Conab em dezembro do ano passado".

Governo insiste em fazer novo leilão de arroz

A Queijo Minas, que importaria 147 mil toneladas de arroz pelo valor de R$ 736 milhões, tinha até poucos dias antes do leilão capital social de apenas 80 mil reais. Outro vencedor do pregão, Crispiniano Espíndola Wanderley, dono da ARS Locadora de Veículos, segundo o jornal Folha de S. Paulo já admitiu à Justiça ter pago propina de R$ 350 mil para conseguir contrato com a Secretaria de Transportes do Distrito Federal.

Nem os protestos dos agricultores gaúchos, nem tamanha sucessão de amadorismos e irregularidades dissuadiram o governo Lula de seguir com a ideia de intervir no mercado de arroz. "O presidente Lula participou dessa decisão de anular e realizar um novo leilão, mais aperfeiçoado", disse Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário.

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