O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) deve decidir, na próxima sexta-feira (17), se mantém congelada em 10% a mistura de biodiesel ao óleo diesel ou se retoma a progressão escalonada para chegar aos 15%, previstos pela Lei 13.263/16. A proximidade da decisão colocou em pé de guerra algumas das indústrias mais poderosas do país: de um lado os segmentos ligados ao petróleo, transporte, veículos e maquinários e, de outro, o empresariado emergente dos biocombustíveis e do agronegócio.
O percentual exigido por lei na mistura do biodiesel não afeta somente os usuários de óleo diesel, mas toda a economia brasileira devido ao peso dos combustíveis na inflação, e envolve ainda preocupações com o meio ambiente e a saúde da população.
A elevação da mistura chegou a 13% no início de 2021, mas acabou recuando para 10% naquele mesmo ano, numa decisão do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para atenuar a alta do preço dos combustíveis, já que o biodiesel custa cerca de 20% mais do que o combustível fóssil. Mas não foi o único motivo. Desde o aumento da mistura para B12 e B13, aumentaram também os relatos de formação de depósitos em filtros e injetores, danos ao óleo lubrificante e até entupimento de bombas nos postos de combustíveis.
Afinal, faz tanta diferença assim um ou dois pontos percentuais na mistura de um combustível renovável ao óleo diesel? Como isso pode afetar o desempenho dos motores? Qual o impacto quanto à emissão de poluentes e consequente prejuízo à saúde das pessoas? Que mistura teria o melhor custo-benefício?
Debate se acirra às vésperas de definição da mistura do biodiesel
Esses questionamentos estão na base do confronto aberto entre players pesos-pesados do mercado brasileiro de energia e transportes. O primeiro tiro de canhão foi dado em fevereiro pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que emitiu nota contrária ao aumento da mistura de biodiesel, alegando que a medida vai encarecer o frete, produzir inflação, aumentar o risco de acidentes (devido à pane dos motores) e até aumentar a emissão de poluentes, já que diminui a eficiência energética dos veículos, elevando o consumo.
Em resposta, Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio) e a União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Ubrabio) divulgaram nota conjunta atacando a CNT, a quem acusaram de tentar “enganar a opinião pública” e desprezar o meio ambiente e a saúde das pessoas. Uma nova rodada de troca de farpas aconteceu nesta semana, quando a CNT, em conjunto com associações de máquinas, equipamentos, veículos e distribuidores de combustíveis, entre outros, reafirmou a posição contrária à elevação da mistura. E subiu o tom das críticas, dizendo que a indústria do biodiesel utiliza “a urgência na atenção ao meio ambiente e à adoção de práticas sustentáveis, preocupação real de toda a sociedade, para acobertar seus reais interesses: garantir uma reserva de mercado contra a concorrência de biocombustíveis mais modernos”.
Alega-se uma suposta acomodação dos produtores de biodiesel com a tecnologia adotada hoje no país, de base éster. “A característica química desse biodiesel gera problemas como o de criação de borra, com alto teor poluidor. Na prática, esse sedimento danifica peças automotivas, bombas de abastecimento, geradores de hospitais, máquinas agrícolas e motores estacionários (...). Com a mesma soja e demais biomassas que se faz o biodiesel de base éster é possível fazer o diesel verde (HVO), este, sim, sustentável e funcional".
As entidades afirmaram que as discussões sobre o incentivo à produção e uso de diesel verde não evoluem também por questões econômicas e políticas. "Quem produz o biodiesel não quer o HVO. A verdade é que os atuais produtores de biodiesel não querem perder o lucro fácil e rápido do biodiesel de base éster, nem investir na modernização do processo industrial para produzir diesel verde”, atacou a nota.
Indústria do biodiesel cita agregação de valor e empregos
A réplica veio de imediato, por parte das entidades representativas da indústria de biodiesel. Também em nota, acusaram os representantes dos setores automotivo, de peças, máquinas, transportes e de importação de diesel de se colocarem contra a política de combustíveis renováveis iniciada em 2005 pelo atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Eles seriam contra “uma política que, além de reduzir a emissão de poluentes provenientes de combustíveis fósseis e minimizar gastos com a importação bilionária de diesel, também gera oportunidades de promoção socioeconômica para milhares de agricultores familiares, dá destinação ao excedente de óleo de soja e óleos residuais e gordura animal, e agrega valor às cadeias de soja e de proteína animal, com influência positiva sobre o preço de alimentos para os consumidores”.
Quanto à suposta atuação para manter a “reserva de mercado”, a nota diz que o setor "está aberto a novos entrantes e tecnologias para a produção de biodiesel (éster) e também apoia o fomento e a entrada de novas rotas tecnológicas de biocombustíveis e produtos que venham a deslocar o consumo de diesel fóssil por biocombustíveis com melhores características ambientais, como é o caso do diesel verde (HVO)”.
Guerra de palavras à parte, é fato que o biodiesel puro, produzido no Brasil em sua maior parte com soja (70%), óleos vegetais e gordura animal (30%), tem especificações técnicas diferentes do diesel. Por exemplo, o biodiesel é mais suscetível à oxidação e tem maior higroscopicidade - facilidade de absorver água - um atributo que pode favorecer a contaminação microbiana.
Estudo de três anos avaliou impacto de mistura no diesel
Em 2019, os principais fabricantes de veículos do país concluíram um estudo de três anos, o maior já realizado para investigar o impacto de se aumentar a mistura do biodiesel. Supervisionado pelo Ministério de Minas e Energia, o estudo foi feito para atender uma exigência legal antes da validação da mistura obrigatória de 15%. Cada montadora realizou seus próprios testes, com diferentes metodologias e enfoques.
Ao final, a maioria aprovou o uso do B15, mas houve alguns resultados negativos, e a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) optou por recomendar a não elevação da mistura de 15% sem que antes houvesse garantia do aumento de estabilidade do biocombustível.
A Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), que ajudou a coordenar os testes, recomendou a manutenção da mistura B10 até conclusão de novos estudos técnicos e após elevação do requisito de estabilidade à oxidação para um valor mínimo de 20h e criação de um programa de treinamento em boas práticas.
O que mostraram os testes das montadoras com o B15
Nos testes da montadora Mercedes Benz, por exemplo, em duas ocasiões houve entupimento dos injetores e o veículo precisou ser rebocado. Verificou-se que o biodiesel utilizado tinha uma estabilidade oxidativa menor, o que acelerou a degradação. A indústria de biocombustíveis, que forneceu o produto, admitiu que houve falha na especificação de qualidade do lote entregue à Mercedes.
A Volkswagen apontou contaminação do óleo lubrificante, enquanto a Scania reportou que o óleo do motor durou um terço menos do que quando o motor funciona com diesel comercial. Já a Renault reprovou a mistura após o filtro de combustível obstruir três vezes antes de cumprir a quilometragem especificada para a substituição.
Por outro lado, a Nissan não verificou desempenho fora das conformidades, enquanto a Volvo verificou “grandes reduções das emissões de material particulado, o que ratifica o benefício do acréscimo do biodiesel”. A FIAT atestou também não ter encontrado qualquer anomalia em seus testes, conclusão parecida à do fabricante MWM. Nos testes, algumas montadoras resolveram ir além do proposto e testaram a mistura B20, ou seja, com 20% de biodiesel acrescentado ao diesel.
A Cummins quis averiguar o impacto da mistura no desempenho do motor, e concluiu que torque e potência variaram dentro dos limites aceitáveis. Já a CNHi observou redução nas emissões de CO, HC e MP, com discreto aumento das emissões de NOx, sempre em conformidade com os limites estabelecidos pela legislação.
Usinas elevaram garantia de estabilidade à oxidação
Após a divulgação do relatório, em 2019, e para atender a demanda da Anfavea de maior estabilidade de oxidação, as usinas de biodiesel decidiram elevar os níveis de garantia de estabilidade do combustível em 50%, o que virou regra pela Resolução 798/2019 da ANP. A garantia de estabilidade de oxidação na produção do biodiesel passou de 8h para 12h. (Obs: o cálculo em questão de horas se deve à aceleração de degradação em testes de laboratórios, e não se aplica a condições normais de uso).
Assim, o problema se resolveu na saída do combustível da usina, onde é feita uma bateria de testes laboratoriais. Paulo Jorge Antonio, diretor de Emissões e Consumo de veículos Pesados da Associação da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), defende a criação de um programa de qualidade que ateste a preservação dos atributos do biodiesel até a ponta do consumo.
“Talvez não haja problema no biocombustível que atende à especificação na hora em que for produzido. Mas dependendo do posto, do tempo transcorrido até abastecer um ônibus ou uma picape, provavelmente não terá a mesma especificação”, diz Paulo Antonio. Isso ocorreria devido à maior absorção de água pelo biodiesel e índices maiores também de oxidação e acidez. O processo de transesterificação utilizado também acabaria concorrendo para aumentar a viscosidade do produto, tornando-o mais propício ao entupimento.
Relatos de entupimentos, quebras e travamentos
Na avaliação do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás, em 2021 teria ficado evidente a relação causal da elevação da mistura de 10% para 12% com o aumento significativo de relatos de entupimentos, quebras de equipamentos, maior troca de filtros e travamento nas bombas de combustíveis. Depois que a mistura voltou a 10%, os problemas cessaram.
“A CNT e a Anfavea têm dados claros de que continua havendo problemas. A gente ainda tem problema no inverno, com ponto de entupimento que é inerente ao produto. Ele não passa por hidrogenação, é um processo produtivo mais antigo, tem propriedades físico-químicas inerentes, tem oxigênio, se degrada mais rápido. São questões do biodiesel, mas isso não o torna um produto ruim. É um produto ótimo, mas que tem alguns momentos uma aplicação ruim e um limite de utilização que ninguém sabe exatamente qual é", afirma Ana Mandelli, gerente de distribuição de combustíveis do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP).
A “receita do fracasso”, diz Mandelli, é quando o biodiesel percorre uma cadeia longa, fica guardado no posto ou vai para um equipamento pouco usado, como um gerador. “Nas cadeias mais curtas ocorrem menos problemas”, assegura.
As novas exigências quanto às emissões de veículos pesados no Brasil (válidas desde janeiro) podem acabar agravando ainda mais os problemas com aumento na mistura do biodiesel, segundo a AEA. Os motores padrão Proconve-8 (Programa de Controle de Emissões Veiculares) teriam tecnologia menos tolerante ao combustível renovável.
Proconve 8 poderia agravar problemas com biodiesel
“O limite de NOx (óxidos de nitrogênio) no Proconve 7 era de 2 gramas, agora é de 0,4. Cinco vezes menor. As tolerâncias ficaram bem menores, e o biodiesel acaba aumentando o NOx, por conta do oxigênio. Entrou o DPS, que é um filtro de partículas que pode entupir mais fácil do que no Proconve 7, que não tinha esse filtro de partícula”, relata Paulo Antonio.
O ponto-chave, enfatiza, é a estabilidade do biodiesel. “Uma coisa é o produtor lá do biodiesel atender a especificação. Mas se o combustível ficar parado, dependendo de como é manejado e transportado, se demorar para rodá-lo, ele acaba absorvendo água. Isso pode gerar mais bactérias, gerar borras e causar o entupimento de filtro”, diz o diretor da AEA.
Segundo a Associação de Engenharia Automotiva, houve aumento do número de reclamações “a campo” em 2021, quando o teor da mistura aumentou para 12% e, depois, para 13%. “Tanto em veículos como na própria bomba de produção, que chegou a travar. Houve um aumento do relato de problemas, dos fabricantes, do sindicato das distribuidoras. Quanto à investigação para ver as causas-raiz desses problemas, é o Ministério das Minas e Energia e a Agência Nacional do Petróleo que deveriam seguir nesse assunto”, afirma Paulo Antonio.
Problema não estaria no biodiesel, mas no manejo
Para Vicente Pimenta, consultor técnico da Abiove, estão querendo jogar no biocombustível a culpa de uma degradação natural, inclusive no diesel, quando o produto não é devidamente manuseado ou fica estocado por muito tempo.
“A primeira coisa da especificação é que o combustível tem que estar limpo e isento de impurezas. Nunca vi problemas com combustível bom. Se você abastece o tanque em dia de chuva, tem que fazer drenagem. Tá escrito nos procedimentos. Mas você chega lá, está fedendo a resina, está turvo, e daí eles põem a culpa no biocombustível. O diesel marítimo, que não tem biodiesel, também tem água, também desenvolve bactérias e vira um lodo, um negócio fedido e preto, que entope filtro, corrói partes metálicas. Quem não drena, está sujeito. Isso é uma praga no Brasil”, diz Pimenta.
Uma forma de diminuir as não conformidades, e o risco de chegar ao consumidor um biodiesel degradado, seria adotar no país um programa de qualidade e rastreabilidade do combustível. É o que defende Donizete Tokarski, diretor-superintendente da União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Ubrabio).
“Se você está com o caminhão e deu problema, é preciso ver em que posto abasteceu, se o problema acontece com outros veículos que abasteceram naquele posto, se o manejo lá foi adequado, se o tanque foi lavado, se os equipamentos estão de acordo com a Agência Nacional do Petróleo. Se vários postos têm o problema, então a questão pode ser a distribuidora. Daí dá para ter rastreabilidade real. O biodiesel sai da indústria após uma bateria de testes, certificados por laboratório. Mas para os combustíveis fósseis isso não ocorre. O biodiesel sai com 200 ppm de água. No Diesel S500, são 500 ppm de água. O problema não é essa água, é o manejo do combustível”, argumenta Tokarski.
Biodiesel teria virtude de criar empregos e diminuir poluição
Os defensores do biodiesel ressaltam que a conta que precisa ser feita em relação à mistura não pode deixar de lado benefícios ambientais, econômicos e de saúde da população. Do esmagamento de 5 quilos de soja, 1 vira óleo e 4 viram farelo. Isso reduziria a pressão da inflação, aponta Tokarski, ao prover matéria-prima para alimentar frangos, suínos e peixes.
“Cada ponto percentual (de elevação da mistura) tem um impacto de R$ 3,5 bilhões na cadeia produtiva de alimentos. Se analisar o impacto que o diesel fóssil tem na saúde dos brasileiros, essa conta vira milionária. Só na região metropolitana de São Paulo, o uso do B10 evita a morte de 244 pessoas por ano. Além disso, cria expectativa de alongar a vida das pessoas em nove dias por ano”, destaca o dirigente da Ubrabio, referindo-se a um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia, que chegou a essas conclusões.
“Temos 30 milhões de asmáticos. Quantas crises de asmas são decorrentes das emissões veiculares? O diesel fóssil emite partículas causadoras de câncer, o que já comprovado em notas técnicas. Temos que olhar para todos os impactos na sociedade”, completa.
Tokarski cita ainda o serviço ambiental que representa o aproveitamento do óleo de fritura, que, jogado ao meio ambiente, tem efeito de poluir 25 mil litros de água a cada litro descartado. O sebo de boi, que antes era vendido a R$ 100,00 a tonelada, diz ele, hoje alcança R$ 5 mil reais a tonelada, para cada 25 animais abatidos. “Antes os frigoríficos permitiam que as pessoas recolhessem gratuitamente para fazer sabão. Veja o valor que isso trouxe para toda a cadeia agropecuária”, diz. E completa: “Temos próximos de 400 mil empregos gerados na cadeia do biodiesel. Com aumento da mistura, a cada ponto percentual são gerados 37 mil empregos. O diesel importador gera emprego aonde? Não é no Brasil”.
Efeito salva-vidas do biodiesel
Os danos à saúde provocados pelos combustíveis fósseis são um dos pontos mais enfatizados pelos defensores do biodiesel. Ana Mandelli, do Instituto de Petróleo e Gás, relativiza as conclusões da EPE, de que o biocombustível evitaria 244 mortes por ano em São Paulo, ao diminuir a emissão de partículas poluentes do ar.
“Quanto a essa retórica salva-vidas, tem que lembrar que ambos diesel e biodiesel, puros, são combustíveis queimando e têm poluentes. O grande benefício do biodiesel está na produção, na absorção de CO2. Num grande centro que está consumindo, a diferença é muito pequena. O grande salto de melhoria de qualidade do ar se dá quando eu mudo a fase do Proconve. Quando tem uma decisão regulatória que obriga os motores a ser mais efetivos, como novos catalisadores, isso sim traz uma melhoria significativa e a gente consegue comprovar em dados. Estudos internacionais mostram que na queima não existe essa diferença tão substancial entre diesel e biodiesel", relata Mandelli, que afirma não ter entendido o cálculo de salva-vidas do estudo da EPE.
“Evitar a parada de um caminhão em um local ermo, que vai colocar em risco a vida de um motorista, também é salvar vidas. Precisamos de um produto que não apresente estes riscos”, completa.
O atual governo vem sinalizando que deverá restabelecer um aumento progressivo da mistura, até chegar aos 15% - o que já teria ocorrido, não fossem as interrupções anteriores. Dentre outros, já se manifestaram favoravelmente ao aumento da mistura os ministros da Indústrias e Comércio, Geraldo Alckmin, da Agricultura, Carlos Fávaro, da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, e do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira. Todos integram o Conselho Nacional de Política Energética. A decisão pode sair na reunião do Conselho de Política Energética, no próximo dia 17 de março.
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