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Trabalhador em planta do frigorífico Cogran, em Pará de Minas
Trabalhador em planta do frigorífico Cogran, em Pará de Minas| Foto: Daniel Caron / Gazeta do Povo

Um projeto de modernização da lei de defesa agropecuária brasileira, construído em cooperação do governo com o setor privado, está prestes a ser aprovado pelo Congresso Nacional. E tem o potencial de incrementar a geração de empregos num segmento que já é responsável por 27,6% do PIB. Pelo PL 1.293/2021, de iniciativa do Executivo, já aprovado na Câmara e na Comissão de Agricultura do Senado, as agroindústrias deverão seguir um programa de autocontrole da qualidade de seus produtos de origem animal e vegetal, como já acontece em boa parte dos países que competem com o agronegócio brasileiro.

A fiscalização, o poder de polícia administrativa, continuará sendo atribuição dos auditores fiscais federais agropecuários, que não necessariamente vão dar expediente diuturno nas fábricas, mas farão auditagem dos processos para verificar se todas as exigências estão sendo cumpridas. “Hoje somos uma trava para o emprego no Brasil. Há casos de frigoríficos que precisam criar um novo turno, mas como temos de estar dentro do processo, internamente, não temos gente suficiente para atender a demanda”, sublinha a ex-ministra da Agricultura e deputada federal Tereza Cristina (PP-MS).

Se aprovada, a lei deve desencadear a criação de 20 mil empregos represados somente nas cadeias de carne suína e de aves, em que o Brasil é 4º e o 1º exportador mundial, respectivamente. “ Hoje precisamos de abates extras., e às vezes não tem fiscal para o abate extra. É como o mundo está fazendo, por meio de um sistema Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC). É cuidar do que eu produzo e submeter à análise do serviço veterinário oficial”, destaca Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).

Mudança na lei tem aval e recomendação do TCU

Na tentativa de acompanhar o ritmo acelerado de crescimento do agronegócio, à primeira vista uma solução simples poderia ser a criação contínua de novas vagas de fiscais agropecuários federais no serviço público, colocando um fiscal em cada linha de produção ou abate. Apesar de haver defasagem no número de fiscais – o secretário de Defesa Agropecuária José Guilherme Leal defende “reposição urgente”, visto que hoje são 2.400 e há vinte anos eram 4.040, – aumentar indefinidamente o número de agentes vai na contramão da gestão de defesa agropecuária adotada por nossos principais concorrentes internacionais. Nem é o recomendado pelo próprio Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou que o Ministério da Agricultura avaliasse “a conveniência de realização de inspeção federal periódica, sem exigir a presença permanente de fiscais federais agropecuários nos estabelecimentos (...) atribuindo a profissional contratado pelas empresas fiscalizadas a responsabilidade pela garantia da qualidade dos produtos de origem animal e do tratamento adequado dos animais, mas mantendo o controle ministerial por meio de auditorias e supervisões periódicas, baseadas em matriz de riscos higiênico-sanitários de acordo com padrões técnicos a serem definidos”.

“É o TCU que está dizendo, e sabe por quê? Para proteger o dinheiro do consumidor, para que a gente tenha otimização dos recursos públicos dos nossos auditores. Para que ir todo dia numa planta que nunca tem erro? Vai cuidar de quem tem erro, e quem nunca tem erro você vai analisar uma vez a cada semana, uma vez a cada dez dias, e assim por diante”, sublinha Santin, da ABPA. Atualmente, segundo Santin, esse apoio ao serviço federal já existe e envolve 12 mil auxiliares técnicos de inspeção, pagos pelas empresas e que “estão lá, seguindo ordens do fiscal agropecuário”.

Programa agiliza trâmites para exportação

O projeto cria, também, o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária, que vai exigir dos estabelecimentos o compartilhamento em tempo real de dados operacionais e de qualidade com a fiscalização agropecuária. Como contrapartida, as empresas que aderirem terão incentivos como uma maior agilidade nas operações de exportação e importação; prioridade na tramitação de processos administrativos; acesso automático às informações de tramitação de processos e dispensa de aprovação prévia de alguns procedimentos, como reforma e ampliação.

Dentre situações que hoje são atendidas pelos fiscais federais, e que poderiam ser atribuições próprias das agroindústrias, estão, por exemplo, a verificação da temperatura das câmaras frias, a checagem da limpeza do chão de fábrica e a instalação devida de iscas de controle de pragas. “O fiscal acaba fazendo um serviço operacional que é obrigação da indústria fazer”, aponta Cinthia Torres, gerente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec).

Com a mudança na lei, a ideia é otimizar o recurso humano do fiscal federal. “Para ele focar naquilo que a empresa tem de fragilidade. E, no que tem de forte, deixar que ela atue. Se ela errar, vai ter que apresentar as correções efetivas, que não gerem risco para a população. Foi feito de forma efetiva? Ok, tá visto, tá dada a chancela. Não foi feito de forma efetiva? É sanção, é punição”, argumenta a médica-veterinária, que é especialista em gestão da produção e qualidade pela FGV.

"Produção de remédio não tem fiscal o dia inteiro em cada planta. E tem falta de segurança? Se eu tomar um remédio errado, posso morrer, não é? - Ricardo Santin, da ABPA

Modelo é adotado pelos EUA e outros países concorrentes

Após anos de debates entre representantes públicos e privados, a saída escolhida foi espelhar o sistema de defesa agropecuário de outros grandes players da produção agropecuária – países da Europa, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Por lá, já não se pratica o modelo “cartorial” de inspeção, que coloca um fiscal em cada linha de abate. Em vez disso, adota-se a abordagem de análise e gerenciamento de riscos, em que o agente privado estabelece seus processos de garantia de qualidade, faz os registros e controles de todas as etapas, e o fiscal federal atua em cima desses dados, checando informações laboratoriais, realizando auditoria e visitas periódicas às plantas para atestar a conformidade.

“Uma empresa que tem nome jamais vai querer colocar isso em risco. É bem provável que a preocupação fique ainda maior porque a responsabilidade cai também nos ombros da própria empresa, e não mais somente nos ombros dos fiscais do Ministério da Agricultura”, sublinha o senador Acir Gurgacz (PDT-RO), presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).

Distorções sobre o propósito da lei irritam o secretário de Defesa Agropecuária José Guilherme Leal. "Algumas postagens que têm saído ultimamente chegam a ser desrespeitosas aos profissionais da iniciativa privada que trabalham no controle de qualidade. Dão a entender que só o servidor público, que só o Estado sabe o que tem de fazer. Temos que respeitar e reconhecer que a nossa agroindústria cresceu com o trabalho do Ministério da Agricultura, mas também com o aperfeiçoamento do setor privado", sublinha.

Não existe autofiscalização, não existe autoinspeção

“O projeto de lei mantém a função do Estado, mas aumenta a responsabilidade do setor privado. Estão dizendo que estamos acabando com a fiscalização agropecuária, mas isso está claro: o poder de polícia fica sob responsabilidade dos servidores que têm atribuição de realizar auditoria e fiscalização. Não existe autofiscalização nesse projeto, não existe autoinspeção”, enfatiza Leal.

Para Santin, da ABPA, o sistema digital de fiscalização dificultará desvios, como os investigados na operação Carne Fraca. "Controla mais as fraudes, porque elas não acontecem sozinhas, acontecem na empresa e alguém que fechou o olho. Com o relatório, um hub laboratorial, algoritmo e fiscalização digital, a Inteligência Artificial vai apontar um desvio que está começando a aumentar. E dará o alerta: fiscal, vai lá fiscalizar essa planta".

Trabalhador percorre linha de produção de cortes de tilápia em fábrica da cooperativa C.Vale, no Paraná,
Trabalhador percorre linha de produção de cortes de tilápia em fábrica da cooperativa C.Vale, no Paraná, | Gazeta do Povo

Oposição quer barrar autocontrole sanitário

Contrária à nova lei, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), insistiu, durante audiência no Senado, que o projeto “tira a autonomia administrativo-financeira alimentar do Estado brasileiro”. “Como vai ser a autuação? Eles mesmos vão se autuar. O consumidor quer a garantia de comprar um produto que seja fiscalizado”, afirmou.

O presidente da Associação Nacional dos Fiscais Federais Agropecuários (Anffa), Janus Pablo Fonseca de Macedo, criticou a medida, dizendo que se os fiscais forem “abruptamente retirados de uma planta frigorífica, isso deixa o consumidor indefeso”. Ele defende uma década de transição até chegar ao novo modelo. O secretário de Defesa Agropecuária rebate: “Não tem como ter prejuízo ao consumidor ao se aumentar a responsabilidade do setor privado e exigir mais controle de qualidade. E reforço que a auditoria do Ministério vai ser mais eficiente com esse projeto de lei”.

Dentre outros benefícios na modernização da lei, o Ministério da Agricultura aponta uma maior capacidade de atuar “na inteligência da fiscalização e da auditoria”, redução de custos (muitos processos hoje ainda ocorrem em papel e formulário), agilidade no comércio internacional, redução de prazo para as liberações, acesso imediato a resultados de análise de controle oficial, suporte para gestão de qualidade das empresas, auditoria mais eficaz e integração de dados (regulador e regulado) e estatísticas do setor agropecuário.

Fim das barreiras burocráticas para produtos regionais

Pela novo regramento, haverá uma plataforma nacional integrando os serviços de inspeção federal, dos estados e dos municípios. Isso poderá evitar que se repitam cenas de produtores de Minas Gerais perdendo carregamentos inteiros de queijo, jogados no aterro sanitário. “Não posso culpar os fiscais. O produtor estava errado? Não, ele também fez o melhor que pôde. São queijos que se vendem há décadas, de excelente qualidade. A nossa legislação diz que o serviço de inspeção municipal só autoriza a vender na cidade dele. Quando vem um comprador, reúne o queijo e leva embora, mesmo tirando nota fiscal, ele não tem registro na inspeção federal”, diz o deputado Domingos Sávio (PL-MG), que foi relator do projeto na Câmara.

Pelo sistema de autocontrole, os municípios poderão credenciar médicos veterinários para orientar os pequenos e médios produtores a seguirem os padrões de qualidade exigidos pelo serviço de inspeção. A fiscalização, contudo, continuará do servidor público.

Não existe exportação sem chancela do governo, diz Camardelli

Com vinte anos de experiência no Ministério da Agricultura, e outros vinte à frente da Associação das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), Antônio Jorge Camardelli destaca que o país não seria hoje o maior exportador de carne bovina do mundo - exporta para 184 países do total de 195 integrados à OMC - se as empresas não zelassem pela sanidade de seus produtos. “Não existe exportação sem chancela do governo. Em hipótese alguma algum país compra se não tiver regras e protocolos que deem segurança sanitária ao processo".

Na avaliação do negociador internacional, o setor sabe como trabalhar e reagir aos riscos, que pela natureza do processo nunca vão ser totalmente zerados. "Não é proibido a constatação de algum tipo de problema ou microorganismo, é proibido não ter uma reação a esse processo. É peremptório afirmar que a modernização e atualização dos métodos de controle em hipótese alguma tornam o consumidor indefeso. Não se veem hoje, como antigamente, notícias de focos de zoonoses, morte por clostridium e outras doenças". Tudo isso fica evidenciado, segundo Camardelli, pelos resultados do Plano Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes (PNCRC).

Reginaldo Minaré, diretor técnico adjunto da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), realça que a proposta não surgiu "de forma estranha ao corpo técnico do Ministério da Agricultura". "O próprio ministério amadureceu esse pensamento. É uma metodologia que certamente trará mais agilidade para o poder público, liberará mais servidores, mais fiscais para trabalhar com essas auditorias", pondera.

Aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Agricultura do Senado, o PL 1.293/2021 iria direto para sanção do presidente Jair Bolsonaro, mas um grupo de dez senadores de oposição apresentou requerimento para votação em plenário, que ainda não tem data marcada.

Veja, abaixo, a íntegra do PL

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