A agenda climática ambiental é o atual substituto das barreiras tarifárias, sanitárias e fitossanitárias que durante décadas criaram obstáculos ao comércio internacional. Com a diferença de que essa nova agenda não tem regra alguma sobre o que um governo pode ou não adotar no enfrentamento às mudanças climáticas e na preservação do meio ambiente.
A avaliação é do diplomata Roberto Azevêdo, que comandou a Organização Mundial do Comércio (OMC) por dois mandatos consecutivos (de 2013 a 2020), esteve por três anos na vice-presidência mundial da Pepsico e atualmente é sócio da gestora de capital Yvy, que tem entre os fundadores o ex-ministro da Fazenda Paulo Guedes.
Uma das faces desse novo protecionismo está na Lei Antidesmatamento (EUDR) da União Europeia, programada para vigorar ao fim deste ano e que exigirá das empresas a comprovação de que seus produtos não vêm de áreas desmatadas depois de dezembro de 2020. Inicialmente, os protocolos se aplicarão à soja, carne bovina, óleo de palma, madeira, cacau, café e borracha. À exceção da palma, o Brasil é um dos principais fornecedores globais de todas as cadeias afetadas.
Tensão entre países produtores e importadores de alimentos
“O comércio agrícola internacional sempre sofreu uma tensão muito clara entre os países produtores e exportadores e os países que são importadores líquidos de alimentos. O cenário ideal para os importadores sempre foi e sempre será a possibilidade de manter o comércio administrado. Ele quer importar quando precisa, a preços bons e baixos. E não importar, beneficiando o produtor doméstico, quando não precisa do alimento, quando está com o abastecimento satisfatório. Isso vem ao longo de décadas”, diz Azevêdo, que foi palestrante convidado do Congresso Brasileiro do Agronegócio realizado em agosto, em São Paulo, e que conversou com a reportagem da Gazeta do Povo.
Para Azevêdo, esse ambiente protecionista exige que o Brasil faça muito mais do que apenas esforços para melhorar sua imagem ou investir em propaganda. “Precisamos ser mais ambiciosos, precisamos partir para a ofensiva. Não é apontando o dedo para os outros, mas tendo coerência de narrativa, um plano de ação comum”, afirma. Além de afinar o discurso internamente, entre os atores do setor privado e o governo, a segunda tarefa de casa envolve “não falar sozinho” na arena internacional.
“Essas ações da Europa não fazem sentido em outras partes do mundo. Estamos na terceira safra [anual] e eles ainda estão brigando pela primeira. Somos uma realidade completamente diferente, uma agricultura tropical que não obedece às métricas da agricultura temperada”, pontua. Roberto Azevêdo defende que o Brasil trabalhe em prol de uma coalizão que “leve essa narrativa para a prateleira de cima do debate internacional”. Um aliado natural, em muitos aspectos, seriam os Estados Unidos.
EUA se ressentem das mesmas arbitrariedades
“Há tensões, sobretudo no setor governamental dos EUA. Mas no setor privado, há receptividade muito grande, porque eles sentem a mesma coisa. O mesmo problema de imprevisibilidade, de arbitrariedade nas regras internacionais que estão sendo colocadas, impostas por políticas públicas que tampouco fazem sentido nos EUA”, argumenta. O diplomata defende que a COP30, no ano que vem, em Belém do Pará, será a oportunidade para colocar no papel esse realinhamento com países produtores de alimentos.
“É um momento que não deveríamos desperdiçar. De colocar em xeque uma narrativa do hemisfério Norte que não é condizente com o global. Quanto mais pessoas líderes e competentes do setor [agro] pensando nisso, melhores nós estaremos”, destaca. “O Brasil não pode se dar ao luxo de esperar por uma nova ordem. Nós temos que tentar construir esta nova ordem o tempo todo. No meio da turbulência, tem muita oportunidade. Em qualquer negociação em que há mais de dois, sempre tem espaço para explorar as divergências e encontrar coisas comuns.”
Morando em Nova York, de onde identifica tendências regulatórias e acompanha as mudanças nas políticas públicas internacionais, Azevêdo entende que o momento é propício para criação de novas alianças: “As alianças no Sul são muito óbvias. O Mercosul, o continente africano, que obviamente é aliado nosso. Os próprios Estados Unidos, um dos grandes produtores mundiais de alimentos, têm as mesmas preocupações que nós temos. Eles também veem o Brasil como competidor, é natural. Mas querem um campo de jogo para competir com igualdade, evitando a arbitrariedade e a discriminação, que eles também sofrem”.
Saber explorar as divergências
“Se trago o Brasil, a América Latina, parte do continente asiático, a África, os Estados Unidos... o setor agrícola passa a ser visto como uma das soluções. O mundo desenvolvido não é uma entidade monolítica, você tem que explorar essas divergências”, insiste, com a expertise de quem liderou por quase uma década o maior fórum de disputas comerciais entre países.
Azevêdo enfatiza que a OMC, que atualmente está com a câmara de arbitragens de conflitos paralisada, passou a maior parte de sua existência, do pós-guerra, em 1947, até 1995, sem regras para a agricultura. “Quem trouxe a agricultura para dentro do sistema? Foram os EUA. Não fomos nós nem a África”, aponta.
“A maior preocupação de meus interlocutores [à época da OMC] era a agricultura brasileira. Era a preocupação número um. Vocês vão querer acesso à minha agricultura? Ah, isso vai dificultar muito”, relata.
A competitividade brasileira, assim, acaba fazendo que os mecanismos de proteção agrícola se proliferem e vistam roupagem da agenda climática e ambiental. “Não é à toa que o antidesmatamento ganha a projeção que tem. O Brasil é um foco desse lado protecionista dessa agenda climática e ambiental. É muito difícil quando você é alvo de uma ação que não é acidental. Ela é claramente muito bem desenhada para que isso aconteça”, descreve.
Atuando como consultor da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Roberto Azevêdo diz que o setor produtivo entendeu que a agenda climática e ambiental não é uma moda passageira, ou algo que possa mudar conforme a ascensão e queda de partidos políticos.
Agenda ambiental não vai desaparecer
“Essa agenda não vai sumir. Pode dar nuances diferentes, tonalidades diferentes, mas não tenho dúvida que vamos ter que nos adaptar às mudanças de tonalidade ao longo dos anos. As pessoas veem a eleição na Europa e dizem, ah, isso significa que a agenda climática ambiental acabou. Não, não acabou. Ah, mas vem o Trump nos Estados Unidos, então acaba essa agenda. Não vai ser o presidente Trump que vai mudar isso", assegura Azevêdo.
"As grandes corporações americanas já abraçaram essa agenda porque não veem alternativa. A realidade se impõe. Trabalhei na Pepsico durante três anos. A empresa não estava fazendo o que fazia porque o governo estava pedindo, ou porque o marco regulatório demandava isso. Mas porque entendia que para sua própria sobrevivência, seja política, econômica ou comercial, ela precisa abraçar e agir de uma maneira muito proativa”, argumenta.
“É natural que a Europa procure fazer o seu modelo prevalecer mundialmente, até porque eles estão na frente da curva. Eles começaram a pensar nesse tema de maneira muito mais assertiva, eficaz, muito cedo. Muitos dos estudos que existem hoje foram feitos na Europa, por cientistas europeus, olhando as métricas e os sistemas produtivos europeus. Então é natural que isso aconteça no primeiro momento”, explica.
Dialogar e propor outras métricas
“Acho que o que a gente tem que procurar fazer, e não estou dizendo que não está sendo feito, é procurar dialogar. Olha, isso que vocês estão fazendo está muito bem, mas esse sistema, essas métricas, não funcionam em outros lugares. Não funcionam em outras geografias. Vamos tentar chegar nos mesmos objetivos, mas vamos ver qual caminho cada um tem que percorrer para chegar lá", afirma o diplomata.
"Se conseguirmos abrir espaço para esse tipo de conversa, facilita muito a nossa capacidade de demonstrar o quanto que o país, o agronegócio brasileiro, pode contribuir no combate às mudanças climáticas e na preservação do meio ambiente”, enfatiza.
Perguntado se vê o governo federal atento a essas questões no planejamento da CPO30, Azevêdo é diplomático. “Acho que está muito consciente de todas as oportunidades e riscos que a visibilidade desse evento vai proporcionar. Não sou eu que vou dizer o que deve ou não deve ser feito. Mas tenho certeza de que estão conscientes disso”, conclui.
*O jornalista participou do Congresso Brasileiro do Agronegócio (CBA) a convite dos organizadores.
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