Os atores Corey Feldman, Jeanette McCurdy e Larissa Manoela são exemplos de astros mirins que abriram o jogo sobre terem suas vidas afetadas por alguma forma de abuso ou exploração vinda de um adulto que deveria ser confiável – seja funcionário, colega de elenco ou até um familiar. Esse tipo de infortúnio não é nenhuma novidade no meio televisivo, mas só agora é escancarado de vez como uma prática comum.
Ao menos, é isso que defende a minissérie O Lado Sombrio da TV Infantil, produção com lançamento previsto para o próximo sábado (13), na plataforma Max (antigo HBO Max). Com o nome original de Quiet on Set (“silêncio nas gravações”), o documental em quatro partes foi um sucesso estarrecedor nos Estados Unidos e em redes sociais, levando muitos a refletirem sobre a troca da segurança e inocência de muitas crianças por fama e dinheiro.
O foco do seriado está no Nickelodeon Studios, um dos principais canais americanos de produções criadas para crianças e adolescentes, como Bob Esponja Calça Quadrada, Kenan e Kel, ICarly e Zoey 101. Fundada em 1979, a emissora foi a primeira opção da televisão a cabo desenvolvida com foco para jovens entre 2 e 17 anos, mas só conseguiu decolar de fato nos anos 1990.
Nessa época, comédias adolescentes inspiradas em sitcoms, animações com personagens esquisitos e irreverentes (como o tal do Bob Esponja) e game shows ganharam destaque na programação. Mas não é sobre essa trajetória de acertos e erros que o documentário se debruça. Ele analisa com muito detalhamento os passos do principal responsável pelo sucesso: o roteirista e produtor Dan Schneider.
Exploração de corpos
Criador dos principais seriados com astros mirins e adolescentes, Schneider era quem mais tinha responsabilidade por criar um ambiente seguro e controlar seus profissionais no set de filmagem. Mas não foi o caso. Ele também foi o responsável por dar o pontapé na carreira de algumas figuras ilustres do entretenimento, como Josh Peck, ator de Oppenheimer, Kenan Thompson, estrela do programa Saturday Night Live, e da cantora Ariana Grande. Então, pode-se dizer que ele era uma espécie de galinha de ouro da emissora.
Com vídeos de acervo reforçando o que é falado por entrevistados, que vão desde atores coadjuvantes até funcionários que participavam na rotina do Nickelodeon, Schneider é retratado como um pervertido que tinha contato direto com muitos jovens. Ele roteirizava e gravava incontáveis cenas dando enfoque nos pés de garotas adolescentes ou mostrando líquidos viscosos sendo jogados em seus rostos – até Ariana, mais tarde indicada a 15 prêmios Grammy, teve de gravar cenas assim quando tinha apenas 16 anos, o que deve surpreender quem só a conhece por suas performances vocais na música pop.
Quando apresentadas, essas ideias nojentas disfarçadas de “brincadeirinhas inocentes” e muitas das atitudes de Schneider corroboram a noção de que o canal era conivente com a exploração de seus jovens talentos para conseguir emplacar sucessos. Não importava o custo disso.
Mensagens inapropriadas
Um dos depoimentos mais fortes vem da atriz Jeanette McCurdy, mencionada no começo do texto. Ela era uma das principais estrelas da sitcom ICarly, também criada por Schneider e um grande hit da emissora. Mesmo que suas falas em O Lado Sombrio da TV Infantil sejam marcantes, ela já havia aberto a “caixa de Pandora” sobre os abusos por conta própria. Em 2022, publicou Estou Feliz que Minha Mãe Morreu, que se tornou um best-seller graças ao seu nome provocador. Quem comprou a obra apenas pelo título revoltadinho acabou descobrindo muitos dos horrores sofridos por jovens na televisão, abrindo portas para críticas mais incisivas ao Nickelodeon.
No livro, Jeanette relata como desenvolveu transtornos alimentares pela pressão da fama. Também conta que sofria abusos de Schneider: Ele oferecia álcool a ela quando era menor de idade e fazia massagens inapropriadas. Como esse cenário negativo não bastasse, sua mãe era permissiva com tudo, pois só estava interessada na fama da filha. Segundo a atriz, que decidiu se aposentar em 2017 e não quis retornar para a nova temporada de ICarly, lançada em 2021, o canal televisivo tentou comprar seu silêncio antes da publicação de Estou Feliz que Minha Mãe Morreu, mas não conseguiu.
Os realizadores de O Lado Sombrio da TV Infantil também foram atrás de comentários inéditos do ator Drake Bell. Ao lado de Josh Peck, ele era protagonista de Drake e Josh, série reverenciada por muitos dos jovens que cresceram nos anos 2000 e eram vidrados no Nick, forma como o canal costuma ser chamado. Bell era bastante admirado por fãs das quatro temporadas da divertida comédia sobre meios-irmãos briguentos. Até que, em 2021, ele foi condenado a dois anos de liberdade condicional por mandar mensagens impróprias a uma menor de idade. Segundo uma matéria da revista Business Insider, o ator de 37 anos teria trocado fotos e textos de cunho sexual com uma criança entre seus 12 e 15 anos.
Vítima ou vilão?
Depois de três anos de silêncio, Bell foi entrevistado pelo documentário e revelou que também foi vítima de abusos quando era uma estrela do Nickelodeon. Ele afirma ter sido pego de surpresa e violentado por Brian Peck, um fonoaudiólogo do canal, condenado em 2004 por abusar de um jovem que na época não teve sua identidade revelada.
“Todo o seu lado do tribunal estava lotado”, relatou Bell durante o quarto episódio da série. “Definitivamente, havia alguns rostos familiares naquele lado da sala e do meu lado éramos eu, minha mãe e meu irmão. Brian foi condenado, mas recebeu bastante apoio de muitas pessoas da indústria, o que me deixou chocado.”
A história dele é real e inegavelmente triste, mas soa oportunista, um dos únicos defeitos de O Lado Sombrio da TV Infantil. Afinal, dar voz a Bell, também condenado por aliciar um menor de idade, mostra que os realizadores optaram por causar controvérsia com essa “entrevista bombástica” para atrair espectadores ao seriado com a garantia de manchetes em tabloides. A edição final também não pesa o suficiente e acaba limpando um pouco a barra dele, colocando-o principalmente como mais uma vítima entre muitas – desde 2021, o ator afirma que se declarou culpado no tribunal para evitar gastos com processos judiciais.
Seja como for, o lançamento desta minissérie pode servir como importante catalisador para debates sobre a segurança de crianças que são colocadas desde a tenra idade na televisão. No Brasil, o documental A Superfantástica História do Balão abordou as experiências negativas de quatro figuras marcantes dos anos 1980: Simony, Tob, Mike e Jairzinho. Esse tipo de discussão sobre como o ambiente de gravação pode ser bastante impróprio para menores de idade deve abrir os olhos de todos os pais e funcionários que decidirem se envolver em um programa televisivo daqui para a frente.
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