Enquanto estamos aqui compartilhando informações e vivendo nossas vidas livremente, existe uma pessoa proibida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo de “manter, transmitir, publicar, divulgar, distribuir, encaminhar ou realizar download de quaisquer arquivos de vídeo, imagem ou texto, com conteúdo depreciativo ou humilhante a qualquer categoria considerada minoria ou vulnerável”. Trata-se de Léo Lins, o humorista que não pode mais fazer humor.
Pela mesma decisão, seu especial intitulado Perturbador foi sacado das plataformas sob pena de multa diária de R$ 10 mil. Mas outros especiais muito mais polêmicos podem ser acessados via Netflix sem qualquer problema. Falamos de gênios internacionais da comédia como Richard Pryor, Robin Williams, Eddie Murphy, George Carlin e Chris Rock, que pavimentaram o caminho para que Léo Lins e outros representantes do humor brasileiro se estabelecessem, popularizando de vez o formato stand-up por aqui neste século.
Foi assistindo ao seriado de Jerry Seinfeld que Léo Lins decidiu que queria ser humorista quando crescesse. E vale lembrar que, mesmo não tendo se envolvido em muitas controvérsias ao longo da carreira, Seinfeld enfrentou protestos quando sua série chegou à última temporada e ambientou um episódio na parada cívica porto-riquenha de Nova York, com o personagem Kramer acidentalmente botando fogo numa bandeira de Porto Rico. Sorte que isso se deu em maio de 1998. Em maio de 2023, Seinfeld correria sérios riscos de ser cancelado virtualmente. No Brasil então...
Enquanto Perturbador não volta ao ar, o time de jornalistas da Gazeta do Povo montou um top 5 de especiais recentes em homenagem ao censurado Léo Lins. Em cena podem ser vistos alguns dos mais ferinos e ácidos comediantes da atualidade, provando com suas piadas que o limite do humor deve ser o riso.
Encerramento (2021), de Dave Chappelle
A lista começa com o especial de um humorista que decidiu dar um tempo após ser muito patrulhado por suas piadas. Desde os minutos iniciais de The Closer (o título original), gravado na sempre esculachada Detroit, Dave Chappelle trata a apresentação como uma espécie de terapia em grupo, rememorando os problemas em que se meteu no passado, principalmente por tocar em temas sensíveis para a comunidade LGBT. O comediante alega que seu problema sempre foi com os brancos, não com qualquer grupo minoritário. Claro que essa pegada mais confessional é quebrada por piadas pesadíssimas, afinal, esse é o terreno de Chappelle. E ele sempre vai avisando que o show “vai piorar”. Logo de cara, faz graça com as marcas das vacinas de Covid-19 disponibilizadas pelo governo americano, dizendo que tomou a mesma aplicada nos mendigos, o que o colocou em conexão com sua negritude (para colocar de maneira mais suave). Há também muita zoeira com o feminismo e o que essa palavra representa em sua acepção. Com a história de sua finada amiga que encerra o espetáculo, Chappelle reafirma que está pedindo por um momento de reflexão em nome da nobre arte de fazer rir. O problema é que já estamos em 2023 e não parece que caminhamos para um futuro mais tranquilo para quem lida com comédia. (José Flávio Júnior)
Humanidade (2018), de Ricky Gervais
Logo nos primeiros minutos do especial Humanidade, Ricky Gervais faz piada com aids e estereótipos com grupos de risco. Na sequência, emenda outro chiste rápido: “O que o órfão surdo, burro e cego ganhou de natal? Câncer!”. Em seguida, indaga a audiência: “por que alguém se sentiria ofendido?”. O humor do comediante inglês, criador de uma das maiores séries de todos os tempos, The Office, não deixa uma minoria ou “grupo vulnerável” de fora de suas observações ácidas. Mas ele também fala sobre cristianismo e sobre como é ser rico e “opressor”. Se o Tribunal de Justiça de São Paulo, que cometeu a censura contra o humorista Léo Lins, quisesse ter coerência sobre sua polêmica decisão, a carreira toda de Gervais seria proibida no Brasil. Lá fora, o humorista goza de uma liberdade muito maior do que a estabelecida por aqui, mesmo sendo morador de um país que recentemente prendeu uma mulher por rezar silenciosamente em frente a uma clínica de aborto. Humanidade é polêmico e desafia vários tabus, tantos os tradicionais quando os mais recentes, especialmente os criados pelo politicamente correto. Apreciar o especial não significa concordar com suas colocações. A inteligência do texto expõe as contradições da sociedade e as falhas argumentativas da nova religião, a Justiça Social. Recomendado para quem não é sensível sobre suas crenças e opiniões e entende que uma sociedade saudável permite um humor livre de amarras. (Ewandro Schenkel)
Paper Tiger (2019), de Bill Burr
Uma das piadas que o comediante americano Bill Bur conta em Paper Tiger, especial de comédia da Netflix, parece ter sido feito sob medida para uma certa primeira-dama que tem ganhado os holofotes de maneira nem sempre positiva: “Quando as primeiras-damas começaram a agir como se tivessem sido eleitas? Tudo o que elas fazem é ficar ali sorrindo e acenando”. Ele muda o alvo e continua: “Feministas não são espertas como parecem” e faz troça dos homens que se dizem feministas: “Sempre que ouço um cara dizer: ‘Sou um homem feminista’, penso: 'Essa é a maneira mais patética e imbecil de tentar pegar mulher'”. Diante de uma plateia inglesa, ele ainda faz pouco caso do gênio local Stephen Hawking, falecido em 2018, chamando-o de “aquele cara que vivia sentado” [Hawking tinha esclerose lateral amiotrófica] e falando que não o suportava porque só falava coisas inteligentes e negativas. “Volte aqui quando tiver algo burro e positivo pra falar”. E ainda imagina a humanidade sendo suplantada por robôs e sobrando apenas os hipsters para lutar contra as máquinas. Sem medo de tocar em tópicos controversos, inclusive o racismo, Burr ainda tem mais três especiais disponíveis na Netflix – I'm Sorry You Feel that Way (2014), Walk Your Way Out (2017), Ao Vivo no Red Rocks (2022) – e criou a série de animação F Is for Family, também da Netflix. Está milionário e gera uma porção de empregos, que é o que acontece em países onde não há juízes censurando piadas. (Jones Rossi)
2017 (2017), de Louis C.K.
Talvez nesta lista você não encontre nenhum exemplo como o de Louis C.K. O comediante americano é um dos poucos que realmente foi “cancelado”: em 2017, sofreu acusações de diferentes mulheres por má conduta sexual. A carreira estabelecida desde 1985, que rendeu um seriado com cinco temporadas e um contrato frutífero com a Netflix, ruiu da noite para o dia após as acusações, custando seu lugar no pódio da comédia americana. A saída encontrada pelo humorista foi investir em seu site, passando a vender versões digitais de seus shows diretamente aos fãs. Graças a essa estratégia, o comediante tem vivido uma ressurgência e, inclusive, ganhou no ano passado um Grammy por sua apresentação Sinceramente Louis C.K., lançado em sua plataforma própria.Como este ainda não está disponível no Brasil, o caminho para conhecer mais do astro é assistir ao especial 2017, o último a entrar no catálogo da Netflix. Nele, C.K. testa os limites do humor logo de cara, fazendo troça com temas como aborto e suicídio (definitivamente algo que não é para todo gosto, mas um bom exemplo da liberdade de expressão). A apresentação também indica para onde a carreira do comediante poderia ter isso se não rolasse seu cancelamento. Trocando o jeans e a camiseta preta básica por um terno, algo incomum em suas apresentações mais clássicas, C.K. mostra total domínio de seu material que, além do simples humor negro e bruto, busca entender a condição humana e provocar alguma reação de sua audiência, mesmo que a risada nem sempre seja o objetivo. (Erich Thomas Mafra)
Genes da Mãe (2022), de Christina P
De terninho cor de rosa-choque, Christina P sobe ao palco em Nova York no especial da Netflix Genes da Mãe. Ela, que simplificou para a inicial seu sobrenome húngaro Pazsitzky, deixa claro que sua vida de mãe de meia idade é complicada. "O último bebê que pari tinha 4,8 quilos!", informa, antes de descrever alguns fatos fisiológicos pouco estéticos a respeito. Ela se opõe aos nossos tempos de sensibilidade exacerbada, de pouca resiliência. "Eu quero ser uma mãe dos anos 80. Na época, tinham um comercial que passava às 22h: 'Você sabe onde estão seus filhos agora?' Eles tinham que lembrá-las que elas tinham filhos. Foi a era de ouro da maternidade". Corajosamente, Christina muda de tom no final: abre o coração, perdoando seu pai pelos erros e dizendo o quanto é grata por ele e pela família. "E agradeço à minha mãe, por me fazer resiliente". Em meio a muito riso, e piadas às vezes crassas, uma pequena lágrima sincera e humana. (Eli Vieira)
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