Desde que foi lançado, Dias Perfeitos, do renomado diretor alemão Wim Wenders e que foi indicado ao Oscar 2024 na categoria Melhor Filme Internacional, tem sido recebido como uma ode à vida simples. Isso por contar menos uma história e, sim, mostrar uma forma de viver em que se valoriza a rotina, as pequenas e ignoradas belezas do cotidiano, que deixamos de apreciar pela pressa, preocupações, mas que ao darmos a devida atenção preencheria os dias, saciando nossa sede de sentido, aquietando nosso espírito, pacificando nossa alma. Se o leitor valoriza essa vida simples, certamente não sofre de “spoilerfobia”, mas fica o aviso da presença de spoilers no que segue.
De fato, em sua primeira metade, é o que o filme é. Durante a primeira meia hora de Dias Perfeitos, que agora pode ser visto por streaming, acompanhamos passo a passo um dia na vida de Hirayama, zelador de banheiros públicos em Tóquio. Do instante em que acorda ao dormir à noite, inclusive seus sonhos. Na meia hora seguinte, com pequenas mudanças de enquadramento e ritmo, continuamos acompanhando o cotidiano do personagem, que é o mesmo do primeiro dia e se repetiria até o fim, não ocorressem imprevistos, como o aparecimento de sua sobrinha, retratado na segunda metade do filme e que traz algo mais do que apenas uma ode à vida simples.
Se o leitor já assistiu a algum filme de Yasujiro Ozu, perceberá com facilidade sua influência aqui. O cineasta japonês é a referência maior de Wim Wenders e ela fica explícita no nome do personagem, Hirayama, que é o mesmo do protagonista do último filme de Ozu, cujo título já diz tudo: A Rotina Tem seu Encanto (1962). Aliás, o título original desse filme, como bem lembrou o crítico José Geraldo Couto, é Sanma no aji, significando algo como “O gosto do sanma”, um peixe barato e popular comido diariamente no Japão, algo equivalente ao nosso “arroz com feijão”.
O que saboreamos da rotina de Hirayama, em Dias Perfeitos, é um homem devotado ao seu trabalho que preenche os momentos livres observando a paisagem, tanto urbana quanto natural, contemplando a incidência da luz e seus reflexos, escutando músicas em fitas-cassete, lendo livros, brincando na hora do banho, entretendo-se ouvindo conversas alheias. Também cultiva mudas de plantas e coleciona fotografias, que ele mesmo tira, capturando a incidência da luz solar nas copas das árvores ao meio dia. Na língua japonesa há um termo para esse fenômeno natural: komorebi.
Palavras e conceitos de filosofia e estética japonesa nos ajudam a entender o filme, aliás. Um conceito estético importante aqui é o shibui, que se refere à beleza discreta e sutil, não ostensiva ou exagerada, que se revela gradualmente, com o tempo e a contemplação. É a experiência que tem o espectador à medida que aquieta a exigência por uma história e serenamente contempla o que Hirayama contempla.
Rotina bagunçada
Mas isso é assim até a metade do filme, quando surge a sobrinha do protagonista querendo morar com ele, bagunçando a rotina. Parece que outro filme começou e, agora, temos uma história. Embora em nenhum momento se conte o passado de Hirayama, podemos descobri-lo em parte, de forma implícita e indireta, partindo da conversa dele com sua irmã, que foi buscar a filha na casa dele. Pelo papo é revelado que Hirayama se afastou de sua família, rompendo com o pai, e ainda sofria por isso, como se vê no choro quando irmã e sobrinha vão embora.
Isso dá outra perspectiva ao que se mostrou antes, à sua forma de viver, com as músicas que escutava e os livros que lia significando mais, não apenas compondo a rotina de um homem satisfeito com a vida, mas deixando em aberto a possibilidade de ser o contrário disso, de Hirayama ser alguém “parado no tempo” e com medo do futuro, fazendo do apego à rotina também uma forma de fugir de sua vida.
A primeira música tocada no filme, e depois repetida quando cantada em japonês pela dona de um restaurante, por quem ele estava interessado, é House of the Rising Sun, canção tradicional do folk americano, de autoria incerta, tornada famosa pela banda The Animals, nos anos 1960, que é a versão escutada por Hirayama. A letra é sobre a vida de um sujeito que deu errado, que está em ruínas, alertando outros para não seguirem seus passos. Não sabemos o que exatamente aconteceu no passado de Hirayama, mas que algo deu errado, deu.
Seu desapego das modernidades do presente, como não usar smartphone, não sabendo nem o que seria Spotify, não é por amor à vida simples, minimalista, sem cacarecos tecnológicos. Porque ele os usa, apenas não os atuais. Hirayama é um apegado ao passado, aos cacarecos tecnológicos existentes na sua juventude, daí o apreço apenas por músicas dos anos 1960 e 1970, ouvidas em fitas cassetes, e o tirar fotografias em câmeras de filme.
Sombras do futuro
Há também uma recusa do futuro. Hirayama evita criar novas relações, não fala com as pessoas, não responde seu colega de trabalho e só escutamos sua voz pela primeira vez quando responde à dona do restaurante, aquela de quem gostava. Esse interesse fica claro quando, depois de vê-la abraçada com outro homem, ele sai correndo e vai afogar a mágoa se embebedando com cerveja e fumando cigarros.
Mais adiante, conversando com aquele homem, que descobre ser ex-marido dela e que padece de um câncer terminal, ficamos sabendo que Hirayama frequentava o restaurante por 5 anos, mas nunca tendo a coragem de tentar algo com a mulher. E é nessa cena quase final, quando bebia com o sujeito, que o filme constrói um símbolo interessante. Quando tentam descobrir se sombras sobrepostas ficariam mais escuras, Hirayama constatou que, embora fizesse sentido que ficassem, todavia não ficam, e que aquilo, portanto, era “pura bobagem”. Serve como símbolo do que é o passado e o futuro no presente: sombras cujas dores e medos, no fim das contas, não o definem.
Outro conceito estético japonês é o do wabi-sabi, que enxerga a beleza no que é imperfeito, impermanente, incompleto. Nada mais imperfeito, impermanente e incompleto do que nossa vida, a vida de cada um. Aceitá-la como é não significa apenas focar no que há no presente, mas também integrar nele o passado vivido, com abertura para o alargamento do que o futuro pode trazer na forma de um novo presente. Essa integração do passado também encontra no japonês mais uma belíssima expressão estética: kintsugi, que é o “remendar” de algo quebrado colando os cacos com fios de ouro.
O presente é o nosso fio de ouro. Quando sabemos usá-lo, aí sim o mero contemplar de um komorebi, uma mísera réstia de luz iluminando a copa de uma árvore, basta para devolver sentido e beleza a qualquer rotina, ainda mais a de um limpador de banheiro público. Mas se por um lado Hirayama faz isso, por outro faltava colar as partes quebradas, o que não deixa de ser simbolizado no filme com suas duas partes distintas, a primeira e a segunda metade.
Essas duas partes, do presente contemplado e da história do passado que irrompe sem que Hirayama quisesse, são como as duas histórias que caminham lado a lado, mas sem conexão, em Palmeiras Selvagens, de Faulkner, primeiro livro que Hirayama aparece lendo no filme. É somente na cena final que essas duas partes se encontram, como rios desaguando no oceano (outra referência simbólica presente no filme, aliás, quando a sobrinha pede para irem ver o rio encontrar o oceano).
Essa magistral cena final, com a impressionante atuação do ator Koji Yakusho, não deixa dúvida disso, integrando passado e presente, com abertura para o futuro. Ali, Hirayama sorri e chora ao mesmo tempo, enquanto escuta Feeling Good, com Nina Simone a cantar “É um novo amanhecer/é um novo dia/é uma nova vida para mim/e estou me sentindo bem”. É kintsugi acontecendo, com o passado não mais represado e o futuro enfim permitido. E só assim se tem um dia realmente perfeito.
- Dias Perfeitos
- 2023
- 124 minutos
- Indicado para maiores de 12 anos
- Disponível na plataforma Mubi e para locação via AppleTV e Prime Video
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