A ascensão da seleção colombiana foi tão grande no começo dos anos 90 que o eterno Pelé chegou a dizer que a amarelinha que ganharia a Copa de 1994 não seria a brasileira, mas a vestida por nossos vizinhos. Tudo bem que o Rei do futebol tinha fama de errar suas previsões, mas naquele momento ele não era o único encantado com a bola jogada pelos colombianos. Talentos como os do finado Freddy Rincón, do atacante Asprilla e do meio campista cerebral Valderrama garantiam o interesse na equipe. Só que ninguém chamava mais atenção do que René Higuita, com seu 1m75 de altura e um ímpeto exagerado para deixar a meta e sair driblando todo mundo.
Lançamento da Netflix, Higuita: El Caminho del Escorpión narra como o goleiro virou símbolo daquela geração, mesmo não jogando a Copa que Pelé achou que os colombianos ganhariam. É um típico documentário da Netflix, dando muita ênfase aos grandes feitos e tentando justificar os vacilos. Esse tipo de registro hagiográfico virou padrão no streaming, o que exige do espectador fazer suas próprias verificações após a exibição para não ficar com uma versão edulcorada da história. E a jornada da Higuita é tão fabulosa que o doc nem precisava reunir tantos depoimentos elogiosos (da esposa, dos filhos, dos companheiros de gramado) para que a audiência terminasse a sessão simpática ao personagem.
Mais do que explorar as façanhas do goleiro, o documentário oferta uma fotografia do que foi o selecionado colombiano naquele período. Uma equipe que ficou sem disputar uma Copa de 1962 até 1990, conseguindo a vaga para a última na repescagem, após embates contra Israel. Uma vez na Itália, a Colômbia fez uma primeira fase surpreendente, conseguindo um empate nos estertores da partida contra a poderosa Alemanha, o que garantiu seu avanço para as oitavas de final. Com o país inteiro colado nos televisores, o time de amarelo teve um duelo dificílimo com Camarões, outra sensação da Copa de 90, e foi eliminada na prorrogação, muito por conta de um erro de Higuita fora da área: ele foi driblar o atacante veterano Roger Milla, perdeu a bola, e viu a jogada terminar em gol camaronês.
Seis meses em cana
Em solo colombiano, a pixotada não comprometeu a idolatria pelo goleiro. As pessoas iam para o estádio do Atlético Nacional de Medelín para vê-lo adiantado mesmo, puxando contra-ataques e até fazendo gols de falta ou de pênalti. Assim como Chilavert no Paraguai e Rogério Ceni por aqui, Higuita tinha essa qualidade de não apenas atuar embaixo das traves, mas de ajudar seu time a anotar alguns tentos (ele conseguiu 41, muito menos do que os 131 de Ceni, mas o doc faz de conta que ninguém chegou aos pés do colombiano).
No auge da fama, Higuita foi fazer uma visita a Pablo Escobar na cadeia, afirmando ser seu amigo. A atitude deixou as autoridades locais de orelha em pé. Pouco depois, após ser chamado para intermediar o pagamento do sequestro de uma garota, o jogador foi preso e viveu um grande drama. Enquanto seus companheiros de profissão pediam sua soltura – a Copa de 1994 se aproximava e sua forma física preocupava o país –, na detenção os policiais faziam pressão para que Higuita entregasse o paradeiro do estão foragido Escobar. Pelo menos, essa foi a linha escolhida pelo documentário para justificar a polêmica passagem.
Os seis meses no xilindró não encurtaram a carreira do goleiro, que voltou a ser campeão nacional e a atuar pela seleção colombiana. Na verdade, o movimento que o consagrou só surgiu nessa fase. Numa gravação de propaganda, ele começou a desenvolver um tipo de defesa com as plantas dos pés que foi chamada de “escorpião” e batiza o doc da Netflix. A execução da arriscada manobra num amistoso contra o time da Inglaterra no mítico estádio de Wembley deixou o mundo em choque e confirmou que o apelido de “El Loco” dado a Higuita caía de fato como uma luva. A defesa escorpião virou o símbolo definitivo de um atleta que tinha como missão primordial entreter a plateia e inflamar seus companheiros de equipe. Se alguém roubasse a bola de seus pés e anotasse um gol, isso já estava precificado no pacote. Faz falta esse tipo de fanfarronice no futebol atual (mas no meu clube eu dispenso).
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