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É possível afirmar que o grande azarão da categoria Melhor Filme Internacional do Oscar se chama A Garota da Agulha. O terror psicológico dinamarquês não gerou debates infindáveis como o francês Emilia Pérez, não mobilizou países inteiros de forma apaixonada como Ainda Estou Aqui no Brasil e a animação Flow na Letônia, nem tem a força dramática do alemão dirigido por cineasta iraniano A Semente do Fruto Sagrado, que é o melhor dos cinco. Nem por isso, esse filme em preto e branco merece passar batido.
Disponível na plataforma Mubi, o longa-metragem nórdico se destacou no Festival de Cannes e ganhou uma indicação ao Globo de Ouro antes de chegar ao Oscar. Sua história se passa em 1919, logo após a Europa ser impactada pela Primeira Guerra. Karoline, uma pobre operária que se considera viúva, já que seu marido não voltou das batalhas, tenta conseguir uma compensação financeira da fábrica de tecelagem onde trabalha. O pleito com a chefia acaba levando a um relacionamento amoroso com Jørgen, herdeiro da empresa. Nesse pedaço, quando Karoline se descobre grávida e se imagina vivendo um futuro de bacana ao lado de Jørgen, A Garota da Agulha se assemelha bastante com Anora, um dos grandes filmes deste Oscar, sobre o envolvimento de uma dançarina erótica sonhadora com um filho de magnata russo.
A família de Jørgen não aceita o namoro e, mesmo ciente da gravidez, enxota Karoline da vida do rapaz e a demite da fábrica. Peter, o marido da operária, reaparece nesse interim com a face deformada e a mente transtornada pela guerra. Numa casa de banho, a protagonista tenta realizar um aborto usando uma agulha de crochê quando é salva por Dagmar, uma mulher mais experiente que comanda uma rede de redirecionamento de bebês rejeitados nos fundos de uma loja de doces.
Sublime provação
À primeira vista, Karoline teria encontrado sua salvadora. Além de contar com Dagmar para achar uma nova família para seu filho recém-nascido, a tecelã passa a atuar como ama de leite no estabelecimento da benfeitora. Mas o filme vai ficando cada vez mais sombrio e tanto Karoline quanto o espectador descobrem que nada é realmente o que parece. O que é claro desde o início de A Garota da Agulha é o talento da atriz Vic Carmen Sonne, que dá muita credibilidade a Karoline. Trine Dyrholm, que vive Dagmar, não fica atrás. A dinamarquesa de 52 anos já tinha brilhado com intensidade em Rainha de Copas, filme de 2019 que está no serviço de streaming Looke e merece ser visto.
Apesar do evidente talento de ambas, o representante escandinavo no Oscar 2025 tem sido mais celebrado por aspectos estéticos, da direção de Magnus von Hom à fotografia de Michal Dymek. O tom gótico, acentuado pela escolha de filmar sem cores, realmente contribui para a experiência toda. Mas, caso a história não fosse interessante e as atrizes principais não entregassem um trabalho digno, nenhum fru-fru estilístico garantiria tanto destaque para o filme. Uma curiosidade para os brasileiros é que, no auge da amizade entre Karoline e Dagmar, elas vão ao cinema. A cena é sonorizada pela valsa Sublime Provação, lançada pela carioca Alda Verona em 1929, uma década depois do período em que o filme se passa.

Vale reforçar que A Garota da Agulha não é para assistir com a família reunida. Ainda que traga um desfecho bonito, com a defesa da adoção de crianças órfãs, o longa elenca uma porção de personagens sórdidos, às vezes em situações degradantes ou humilhantes. A pobreza de uma Copenhague sob os efeitos da carestia pós-Primeira Guerra (ainda que a Dinamarca tenha tido papel periférico no conflito) grita na tela, sendo quase possível sentir o fedor de alguns ambientes imundos. Mas quem embarcar no conto de Karoline tem grandes chances de sair satisfeito da jornada.
- A Garota da Agulha
- 2024
- 122 minutos
- Indicado para maiores de 18 anos
- Disponível no Mubi





