O que você estará fazendo às vésperas de completar 90 anos? Woody Allen, que faz 89 em novembro, está em cartaz com um filme divertidíssimo falado todo em francês, que prende o espectador da primeira à última cena. Tem quem ache pouco, afinal, o cineasta nova-iorquino já nos brindou com inúmeros clássicos e Golpe de Sorte em Paris figura “apenas” em sua segunda prateleira de bons trabalhos. Mas a real é que essas comparações são injustas, especialmente quando se coloca em perspectiva a sua idade avançada e como sua vida pessoal e profissional foi afetada nos últimos tempos.
Desde Blue Jasmine, de 2013, Allen não entregava algo tão inspirado. A história de Golpe de Sorte em Paris se passa, obviamente, na capital francesa e acompanha Fanny (interpretada pela bela atriz Lou de Laâge), que reencontra o colega de escola Alain andando pela rua e inicia com ele um caso extraconjugal de desenrolar trágico (ainda que com tintas cômicas). É terreno mais do que conhecido para o diretor, que incontáveis vezes estudou as relações amorosas e os impactos do acaso na vida de cada um.
Trata-se, portanto, de um filme confortável para quem acompanha Allen desde suas primeiras produções no final dos anos 1960. Só que isso não é sinônimo de uma narrativa manjada ou preguiçosa. Dividida entre a paixão avassaladora e seu casamento com o ricaço aborrecido Jean, Fanny começa a despertar suspeitas de que há caroço no angu. Seu marido, com ajuda de detetives particulares, confirma que está sendo traído e decide resolver o problema da mesma forma como se livrou de um ex-sócio: contratando capangas para dar um fim em Alain sem deixar o menor rastro.
Golpe de Sorte em Paris fica bastante apimentado a partir desse ponto, com a mãe de Fanny entrando em campo para tentar elucidar o desaparecimento repentino do amante. Durante muitos minutos, o espectador se questiona de onde virá a dica para que mãe e filha descubram o que aconteceu com Alain. O cineasta, com muita habilidade, consegue sustentar o mistério até o último minuto, literalmente.
Partida ao som de jazz
O desfecho recompensador deixa o fã do cinema de Woody Allen feliz e aliviado. Se esse for o último filme de sua carreira, uma possibilidade que ele mesmo considera dada a dificuldade em arrumar mecenas para bancar seus projetos, esse mito da sétima arte deixará a ribalta com algo digno. Seria triste se fosse um filme qualquer e seria muito improvável que fosse uma obra-prima – é desumano exigir tal excelência de um artista no ocaso da vida. E não dá para tratar como algo menor o fato de Golpe de Sorte em Paris ser todo num idioma que não é o do diretor. Nenhum diálogo soa inadequado, nenhuma piada falha... Parece até que Allen nasceu para dirigir em francês (sua afinidade com o país já era anunciada de forma graciosa na cena final de Dirigindo no Escuro, de 2002).
Um fator que aquece a alma de quem acompanha sua filmografia é que, mais uma vez, um standard do jazz brilha na trilha sonora. A música que embala Golpe de Sorte em Paris é Cantaloupe Island, que o pianista Herbie Hancock lançou em 1964. No entanto, a versão que toca no filme é a de 1966 gravada pelo cornetista Nat Adderley, com Hancock ao piano. Dá para cravar que muita gente está saindo das sessões com o tema na cabeça e indo procurar por ele nos serviços de streaming, um favor que Allen já prestou aos bons sons tantas vezes.
Com a proximidade do fim de sua carreira de 50 filmes – uns memoráveis, vários bons (o caso aqui) e outros nem tanto –, a ida ao cinema para essa possível despedida tem quase um caráter de peregrinação para quem teve a vida adoçada pela criatividade desse judeu nascido no Bronx e criado no Brooklyn. Fuja de quem se aproximar jogando areia no filme como você fugiria de alguém que viesse com papinho de Mia Farrow a essa altura do campeonato. O momento é de reverência e agradecimento.
- Golpe de Sorte em Paris
- 2023
- 96 minutos
- Indicado para maiores de 12 anos
- Em cartaz nos cinemas
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