Já ouviu falar em Yukio Mishima (1925-1970)? Ele é considerado um dos principais escritores da literatura japonesa, do mesmo naipe de Haruki Murakami, Kenzaburo Oe e Junichiro Tanizaki. Sua figura também é uma das mais controversas na história daquele país.
Mishima ganhou notoriedade logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Indicado cinco vezes ao Nobel da Literatura, o autor teve seu primeiro sucesso literário em 1949. Mas foi só a partir dos anos 1960 que ele adotou uma postura mais conservadora sobre as mudanças políticas e sociais no Japão do pós-Guerra. É justamente essa fase do seu trabalho que acaba de ganhar uma edição inédita no Brasil.
Sua coletânea de contos Morte em Pleno Verão (1966) nunca havia recebido uma tradução direta do japonês para a nossa língua. A Companhia das Letras acaba de realizar esse feito, oferecendo as visões polêmicas e cheias de nuances do escritor para uma nova geração de leitores. Os dez contos, que ocupam pouco mais de 230 páginas, abordam algumas das fixações que Mishima teve ao longo de sua vida. Ele usa de seus personagens e histórias para debater temas como patriotismo, religiosidade, a globalização (antes de ter esse nome), a masculinidade sob o código de honra dos samurais e até o teatro kabuki, uma forma de arte muito tradicional do Japão.
O livro abre com o conto homônimo, que explora o luto de uma mãe após dois de seus filhos e sua cunhada morrerem em um acidente na praia. De cara, o leitor conhece um dos principais elementos da escrita de Mishima: o cuidado com a descrição dos ambientes e das emoções. “Quando ocorre um desastre como esse, que transcende o que prevê qualquer costume consagrado, é aí que as pessoas sentem maior necessidade de se agarrarem ao que dita a tradição”, crava o autor, como que dando uma dica para toda pessoa que precisa enfrentar uma perda desse vulto. O foco na tradição também permeia o restante da obra.
Onde foram parar os samurais?
Mais adiante, o livro apresenta Patriotismo, o conto mais famoso (e premonitório) de Mishima. Nele, o leitor é introduzido ao tenente Takeyama e sua esposa Reiko. O militar volta para casa certo dia, após falhar na tentativa de ajudar o Imperador do Japão a retomar o controle do país, e decide cometer seppuku, o ritual suicida que surgiu entre samurais em meados do século XII.
Com uma descrição precisa, o autor descortina um ato emblemático daquela cultura, tomando cuidado para que o narrador da história explore a tristeza e as questões morais envolvidas na extrema decisão que é considerada honrosa na terra do sol nascente. “A cena que se via ali bastaria para fazer chorar deuses e monstros”, descreve o narrador, logo no começo do capítulo.
Curiosamente, Mishima morreu em um contexto muito parecido. Em 1970, o autor invadiu uma base militar, rendeu seu comandante e tentou botar em prática um golpe de estado para reaver o poder do país ao imperador. Frustrada a tentativa, Mishima cometeu o seppuku em frente aos militares que haviam assistido ao seu discurso, berrando apaixonadamente: “onde foram parar todos os samurais?”
Até hoje, parte dos jovens nipônicos aficionados por literatura prefere ignorar a existência de Mishima, taxando-o de fascista por causa de sua visão nacionalista e sua paixão pelo estilo de vida samurai. Morte em Pleno Verão reforça que sua obra vai muito além do político, podendo ser lida por qualquer um que goste de debater questões filosóficas e culturais da humanidade.
Ator travestido e monge apaixonado
No conto Onnagata, por exemplo, Mishima aborda a sua curiosa visão do kabuki. O título do conto vem da palavra utilizada para identificar atores que interpretam personagens femininas em peças. Eles surgiram em 1629, após as autoridades do país proibirem a participação de mulheres no teatro; uma decisão tomada para evitar confusões geradas por arruaceiros interessados nas atrizes.
O conservador japonês analisa esse nicho com foco na importância cultural de tal figura. Na contramão dos debates atuais sobre gênero, Mishima vê a inversão de papéis dentro do ambiente teatral com bons olhos, pois representa o esforço do homem para atingir a perfeição no palco. Ele também acreditava que a criação dessa forma de arte ajudou a manter vivo o teatro, ligando os onnagata ao classicismo japonês.
Já o budismo, religião forte no Japão, é analisado em O Amor do Santo Homem de Shiga. “A narrativa trata da rivalidade entre o amor romântico e a fé”, resume bem o narrador no começo do texto. O conto aborda o conflito interno de um monge que se vê apaixonado por uma bela jovem (não espere algo como O Crime de Padre Amaro, do português Eça de Queiroz). Como em outros trabalhos de Mishima presentes na coletânea, o desfecho é trágico, mas oferece algo a se pensar.
Para quem é aficionado pelo Japão ou por literatura, Morte em Pleno Verão traz histórias completas e bem-acabadas sobre os aspectos mais excêntricos daquela cultura. Ler a visão de um conservador autodeclarado sobre elementos tipicamente japoneses será curioso para qualquer brasileiro que vive longe daquela realidade.
Graças à força do livro, muitas indagações surgem no percurso. Isso se dá graças à escrita cuidadosa e até contraditória de Mishima, que segue como referência para qualquer literato dedicado. Com uma boa atenção às nuances, percebe-se que os personagens do japonês eram imperfeitos, assim como ele próprio.
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