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O mundo não é preto ou branco. A vida real não é uma novela, com mocinhos de coração puro e bandidos malévolos. Por mais que as polarizações – políticas, sociais, partidárias, ideológicas – que temos vivido nos últimos tempos queiram transformar o mundo num Fla x Flu, a verdade é bem mais complexa.
Tomemos o caso do ativista russo Alexei Navalny, por exemplo: se você acredita na narrativa dos defensores de Navalny, ele é um herói montado num cavalo branco, que surgiu para libertar a Rússia do jugo ditatorial de Vladimir Putin. Se escolheu acreditar apenas na narrativa pró-Kremlin, Navalny não passa de um nazista e fantoche da CIA.
A acusação que se faz contra Navalny é de que ele teria participado, há 15 anos, de marchas nacionalistas que incluíram simpatizantes neonazistas. Isso é verdade. Também o criticam por declarações xenófobas, que os defensores de Navalny dizem terem sido tiradas de contexto (ele estaria se referindo a “extremistas estrangeiros”). A Internet pulula com supostos “vídeos reveladores”, pró e contra Navalny.

Em entrevistas, Navalny confirma que esteve nessas marchas nacionalistas e que seu objetivo era criar uma coalizão ampla contra o regime autoritário de Putin, “que pode incluir pessoas com as quais eu não concordo”. Navalny apoiou os protestos antirracistas do movimento “Black Lives Matter” nos Estados Unidos, e é difícil crer que um nazista faria isso.
Os fatos, indiscutíveis, são os seguintes: Alexei Navalny era a maior pedra no sapato de Putin e vinha sendo sistematicamente perseguido por ele há duas décadas. Putin tinha tanto medo de Navalny que nunca disse seu nome em público e proibiu todo o governo de fazer o mesmo. Navalny foi tirado da eleição presidencial com acusações claramente inventadas e depois foi preso. Em 2020, foi envenenado na Sibéria e quase morreu. Voltou a Moscou no início de 2021, foi imediatamente preso e condenado – por extremismo e fraude – a 19 anos de cadeia em julgamentos secretos e sem a presença da imprensa.
Finalmente, em 16 de fevereiro de 2024, a mídia estatal russa anunciou a morte de Alexei Navalny, ocorrida numa prisão de segurança máxima localizada ao norte do Círculo Ártico, a 1900 km de Moscou. Segundo relatos oficiais, ele teria colapsado durante uma caminhada.
Trote revelador
A HBO Max exibe Navalny, um documentário sobre o ativista. O filme se concentra nos dias após o envenenamento e acompanha todo o processo de investigação da tentativa de homicídio, terminando com a prisão de Navalny ao retornar a Moscou, no início de 2021. O que começa como uma ampla reportagem sobre o envenenamento se transforma em um thriller de espionagem à John Le Carré, especialmente depois da entrada de um personagem fascinante, o jornalista búlgaro Christo Grozev, especializado em investigações usando cruzamento de dados eletrônicos e informações rastreadas na Internet.
Não vou contar muito para não estragar a surpresa, mas a forma como Grozev descobre os autores do atentado contra Navalny é incrível. Mais incrível ainda é o “trote” que ele e o próprio Navalny passam para um dos criminosos, que acaba revelando detalhes perturbadores – especialmente para Putin – sobre o atentado.
Ver Navalny hoje é chocante porque o tema da morte dele é uma constante no filme. A primeira pergunta do diretor, o canadense Daniel Roher, é justamente sobre a possibilidade de Navalny ser assassinado. Ao longo do filme, familiares, amigos e admiradores de Navalny discorrem sobre o tema. E saber que hoje, três anos depois do lançamento do filme, seu personagem-título está morto, beira o surreal.
- Navalny
- 2022
- 99 minutos
- Indicado para maiores de 14 anos
- Disponível na HBO Max
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