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“Bem raros são, entre os cristãos de nosso tempo, os que creem real e efetivamente no Demônio”, escreveu Henri-Irénée Marrou em 1948, num famoso estudo especial dos Études Carmelitaines sobre Satanás.
Quem o cita é um aluno seu, René Laurentin, que em 1995 publicou sua obra O Demônio: Mito ou Realidade?, considerada indispensável para qualquer estudioso ou curioso sobre o tema e que agora recebe sua primeira edição brasileira por meio de um fenômeno editorial crescente e fascinante: os clubes de leitura por assinatura. A Minha Biblioteca Católica, que nos brinda com esta primeira tradução ampliada, destaca-se como o maior do Brasil em seu nicho, evidenciando como esses clubes não apenas democratizam o acesso a obras raras ou inéditas, mas também cultivam comunidades de leitores e reconfiguram o próprio mercado editorial, oferecendo uma curadoria que vai além da simples transação comercial, entregando uma experiência de formação integral.

E, no caso desta obra de Laurentin, não apenas para cristãos. Seguindo citando seu professor, o autor destaca: “a impressão de incômodo e desconforto que a ideia da existência do Diabo causa ao homem comum de hoje. Mesmo André Gide irritava frequentemente seu público, seja protestante ou católico, pela insistência com que utilizava a noção de Demônio; no entanto, isto não passava de um tema mitológico para ele; mas, mesmo reduzido ao estado de mito, nossos contemporâneos não gostam de ouvir falar de Satanás.”
Laurentin publicou sua obra quase 50 anos depois, quando a redução de Satanás ao estado de mito estava praticamente consolidada. É precisamente desta constatação que seu livro se inicia, em um dos capítulos mais interessantes ao homem contemporâneo, cristão ou não, quando apresenta as posições psicologizantes sobre o Demônio, as que o tratam como mero símbolo ou arquétipo, além das que o tomam apenas como uma personificação do mal.
Um presidente que governa sem aparentar
Nos capítulos seguintes o autor repassa pela revelação gradual do Demônio desde o Antigo Testamento até a atualidade, retomando o diálogo com a contemporaneidade a partir do capítulo XII, em que pergunta se o Demônio existe, se age e se seria necessário derrotá-lo. É quando enfrenta as críticas reducionistas e negacionistas, fazendo a crítica da crítica, não apenas no plano teológico, mas, principalmente, no filosófico, concluindo que o reducionismo e negacionismo do Demônio levou a uma ignorância sobre sua ação, favorecendo amplamente uma proliferação do mal que dificilmente se explica sem sua presença.
É no capítulo sobre esta ofensiva do Demônio que o leitor, se até aqui não estava convencido, no mínimo passa a ter sérias dúvidas se não deveria acreditar na existência do Diabo. O autor expõe o maior êxito do Demônio na época moderna, que é ter substituído sua ação direta que gera medo por “uma ação orgânica anônima, invisível e, portanto, tranquila, que avança no tecido social, sem ruído e sem a marca do príncipe deste mundo, por meio de seus agentes humanos bem estabelecidos em postos estratégicos. Tudo se passa como se ele tivesse adotado o estilo de um presidente e diretor-geral discreto que governa sem aparentar.”
O resultado, segundo Laurentin, é a eliminação de Deus, com a substituição do teísmo pelo chamado humanismo. Isso levou a uma “cancerização filosófica” das ideias sobre a realidade, que, por sua vez, 'pariu' as ideologias, “frutos perversos do idealismo”. Citando a ironia de André Frossard, “se o príncipe deste mundo existisse, aconteceria o que acontece hoje”, deixo por conta da curiosidade do leitor descobrir, no livro, que acontecimentos são esses, que culminam com uma irrupção do atual satanismo explícito, com o autor não se furtando a tratar de figuras como Aleister Crowley, Kenneth Grant, Charles Manson e também igrejas satanistas (algumas reconhecidas oficialmente, como o foi a Igreja de Satanás no estado da Califórnia).
O diabo é o pai do rock
Seria uma contradição abordar Aleister Crowley sem mencionar o rock'n'roll. O autor se demora em várias páginas tratando da relação do guru com figuras icônicas do rock, também sobre o gênero em si, citando algumas músicas, discos, supostas mensagens subliminares. Talvez seja a parte mais controversa (e polêmica) do livro, com a generalização sendo bastante discutível, o que não significa diminuir os riscos e negar os efeitos apontados do que não seria um “entretenimento inofensivo”.
Por fim, o autor faz um questionamento sobre o exorcismo e o futuro do ritual, discorre sobre a atuação do Demônio do ponto de vista prático, por meio das suas armas da tentação e possessão. A estas contrapõe as armas do cristão para o combate espiritual, das ordinárias da oração, jejum e sacramentos, até a extraordinária, “a arma suprema e vitoriosa” que é o exorcismo, cuja prática ritual é esclarecida no capítulo derradeiro da obra.
Se a leitura é indispensável a estudiosos e curiosos, o correr do tempo nestes 30 anos depois de lançada revela que ela se destina também a qualquer um que queria entender melhor a cultura em que vivemos, “confusamente atolada” em paradoxos impossíveis de discernir sem (re)conhecer a ação do Demônio. Até porque, como disse o autor: “É na essência do mistério do mal e do mistério da condenação que também está um mistério de amor”, pois “ainda que O combatam e se oponham a Ele, continua Deus a amar suas criaturas desviadas e manter-lhes a existência e a liberdade de más escolhas.”

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