Há livros que de tão icônicos e onipresentes parecem não precisar ser lidos para acharmos que os conhecemos o suficiente. É o caso de Drácula, de Bram Stoker, publicado em 1897. As lendas e folclores envolvendo vampiros existiam desde muito antes, mas depois de Drácula não há como pensar ou imaginar um vampiro que não seja com suas características, muito também por causa do cinema.
De fato, Drácula é um personagem tão recorrente nas telas que desconfio que seja possível contar a própria história do cinema por meio de seus filmes. A começar pelo clássico Nosferatu, de 1922, dirigido por Murnau e que não leva o nome do famoso vampiro por problemas de direito autoral – cuja história, aliás, daria um filme também. Em homenagem, Werner Herzog filmou o seu Nosferatu, em 1979, com o personagem voltando a ganhar o nome de Drácula, pois os direitos já tinham caído em domínio público. E, agora, Robert Eggers está refilmando o Nosferatu original, com data de lançamento para o dia de Natal deste ano de 2024.
Como se isso não bastasse para comprovar a recorrência e atualidade de Drácula, lembremos outros, como o seriado Drácula, lançado pela Netflix em 2020, e os filmes lançados no ano passado, Drácula: A Última Viagem do Demeter, retratando uma das passagens do livro, O Conde, em que o ditador chileno Pinochet encarna o vampiro e foi até indicado ao Oscar de Melhor Fotografia, e Renfield – Dando Sangue pelo Chefe, que aborda a relação entre Drácula (vivido por Nicolas Cage) e seu lacaio Renfield (Nicholas Hoult).
Ainda, há notícia de que Luc Besson estaria a filmar uma nova versão de O Drácula de Bram Stoker, cuja primeira é de Francis Ford Coppola, de 1992. Um filme, aliás, que não faz jus ao nome, pois embora siga a história em parte, inicia-se com longo trecho que simplesmente inexiste no livro, sem contar as modificações feitas nas personalidades de vários personagens.
Na verdade, apesar de frequente, a obra de Stoker é mal representada nos cinemas. Quem ler o livro provavelmente se surpreenderá. Primeiro, por não se deparar com uma história de terror – nesse sentido, deixa à imaginação do leitor completar o que nos filmes é sempre explícito até demais. Segundo, por ser menos sobre Drácula e muito mais sobre como lidar com os limites da razão humana em confronto com o que parece ser inacreditável.
Esquisitices no castelo
Antes da história começar há uma nota do narrador esclarecendo seu propósito: “que uma história completa – e quase em desacordo com a crença dos tempos mais recentes – possa ser vista como simples fato”. Com um pouco de contexto histórico e cultural, podemos entender o porquê desse desacordo. Estamos no fim do século XIX, quando coisas que ficaram conhecidas como racionalismo, iluminismo, cientificismo e materialismo, estavam mais do que enraizadas, mas já tendo moldado suficientemente o imaginário ocidental, expulsando tudo o que não fosse verificável pela razão, passado pelo crivo da ciência, para o limbo onde estocamos os mitos – termo que na modernidade perdeu seu sentido original, passando a significar algo que não se deveria, no fim das contas, acreditar.
Entretanto, o que fazer quando nos deparamos com algo que deveria ser um mito, mas não temos como negar sua realidade, como a que o advogado Jonathan Harker encontrou na Transilvânia? É como o livro começa, com Harker chegando ao castelo do conde Drácula e testemunhando inúmeras esquisitices que ele jamais acreditaria se não fosse com ele. Qual a reação de alguém “racional”, de “bom senso” nessas horas? O próprio Harker nos respondeu em seu diário: “Não posso deixar que minha imaginação tome o controle sobre mim. Se minha fantasia me dominar, estou perdido.”
Acontece que não era obra de sua imaginação, mas a realidade mesma. Não tendo como escapar, mais adiante teve de reconhecê-la, já tentando racionalizar o que vivia: “É o século XIX fulminando este lugar com sua atualíssima vingança. Mesmo assim, a menos que meus sentidos me enganem, as coisas do passado exerceram e ainda exercem poderes peculiares, que a simples modernidade não consegue derrotar.” Harker é um personagem significativo porque sua incapacidade de negar a realidade é acompanhada de outra, de não conseguir acreditar nela, criando uma tensão interior que enfraquecia sua psique e tirava sua confiança, o que só voltou a recuperar quando viu que não estava louco, pois os demais personagens não apenas acreditavam nele como também testemunharam esquisitices semelhantes.
É interessante notar que uma das críticas feitas ao livro é que seus personagens não apresentam diferenças relevantes, parecendo, no fim das contas, serem apenas um só. De fato, parecem mesmo, mas creio que não seja um defeito e, sim, algo intencional, com as vozes propositalmente se tornando uma única. Todo o livro é narrado por meio dos diários dos personagens e das cartas trocadas entre si, o que torna o leitor mais bem informado do que se passa do que qualquer um deles. Com isso, acompanhamos não apenas o enredo, mas as racionalizações feitas pelos personagens tentando entender o que está acontecendo e pensando em como agir.
Ou seja, as semelhanças dos personagens acabam personificando o real protagonista da história, qual seja, a razão humana tentando entender e interpretar uma realidade que lhe transcende e obriga, antes de tudo, a ter a humildade de reconhecer que não sabe o que está acontecendo e o que fazer. É o que se dá com os personagens, pela voz de um deles: “Recentemente, aprendi a aceitar os fatos, em vez de impor minhas concepções; foi uma lição de humildade que não esquecerei até o fim dos meus dias.”
Um uníssono amém
Faço um parêntese aqui que, espero, signifique mais do que um parêntese. Passamos recentemente por uma situação semelhante, em que a realidade humilhou nossa capacidade de compreendê-la. Refiro-me à pandemia de Covid-19. Nos primeiros momentos, ninguém sabia o que realmente fazer. Não havia comprovação científica de nada, seja do uso de máscaras, dos lockdowns, do uso de remédios, fossem quais fossem, e por aí vai. Hoje, com a vantagem da distância do tempo e do próprio resultado do trabalho da ciência, temos conhecimento suficiente para saber melhor. Meu ponto aqui não é saber quem estava certo, mas lembrar que, à época, ninguém tinha certeza de nada, muito menos científica, embora abundasse quem tentou impor suas concepções sobre os outros.
Nesses momentos, a razão e a ciência só podem trabalhar com o conhecimento acumulado até então e, a partir dele e da realidade que se impõe, conseguir aos poucos desvendar o que se passa, compreendendo as causas do fenômeno para, então, orientar como devemos agir. Como Van Helsing, o professor que simboliza no livro esse conhecimento já existente, disse: “Todas as nossas referências são tradições e superstições. Isso pode parecer pouco em uma questão de vida ou morte – ou melhor, uma questão que vai além da vida e a da morte. Ainda assim, devemos nos contentar; primeiro, porque não temos outra opção; segundo, porque todo conhecimento talvez se resuma a isto: tradição e superstição.”
Não se resume, pois há também a relação entre fé e razão, também presente na obra. Mas, nessa altura – e para que este texto não fique mais extenso do que o livro comentado – não creio que seja preciso dizer mais do que lembrar que fé e razão não só podem andar juntas, como devem, necessariamente. Não à toa, os personagens terminam a história pronunciando “um uníssono amém”. Enfim, se você chegou até aqui, mas ainda não leu Drácula, confesse: não imaginava que o livro seria muito maior (e melhor) do que uma história de vampiro, não é?
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