“Muito cuidado com o que você deseja, porque seu desejo poderá se tornar realidade”, diz o sábio ditado popular. Lição simples, mas não menos verdadeira. Quando pensamos naquilo que queremos, só visualizamos a parte superficial. A aparência de felicidade, sucesso e realização pessoal. Deixamos a mudança interior, que vem junto, para depois.
Charles Dickens (1812-1870), escritor inglês, buscou com Grandes Esperanças (1861) explorar esse lado sombrio e ignorado da realização dos nossos sonhos. Trata-se de uma autobiografia ficcional de um menino pobre e órfão, que recebe uma oportunidade de ascender socialmente.
Publicada inicialmente na revista Durante o Ano Todo, do próprio Dickens, a obra tem um ritmo folhetinesco, em que os capítulos te seduzem a ler o seguinte. A leitura é, assim, fácil e agradável, sobretudo pelo “mundo dickensiano”, que é realista, mas gosta de explorar a fantasia.
Charles Dickens também teve uma infância difícil e pobre. Ainda que não fosse um órfão, muito de sua vida está nesta obra, assim como em outras, casos de Oliver Twist (1838) e David Copperfield (1850). O protagonista é Pip, o menino criado pela irmã “à mão”, ou seja, com o amplo uso da violência física. A única pessoa pela qual ele sente amor é o esposo dela, o ferreiro Joe Gargery.
Depois que Pip é ameaçado por um fugitivo, acaba tendo de roubar da própria casa um pouco de comida e uma lima. Ninguém descobre o pequeno pecado e o segredo permanece entre os dois, que estabelecem ali uma espécie de comunhão silenciosa. Esta culpa vai atormentar o menino por um bom tempo.
Pip então é chamado para cuidar de uma idosa, chamada Sra. Havisham. Aqui, o mundo dickensiano se torna fantástico e visualizamos uma espécie de bruxa, revoltada contra os homens, vivendo em uma casa rodeada de teias de aranha. Ela tem uma filha adotiva, Estella, por quem o menino imediatamente se apaixona.
Transformação interior
Mais tarde, um misterioso benfeitor decide pagar pela educação de Pip, que logo supõe ser a própria Sra. Havisham. Ele vê nisso a oportunidade de, além de escapar da pobreza, conquistar sua amada, que se torna seu objeto de desejo. Aqui se inicia a grande transformação interior de Pip.
Ele começa a sentir vergonha de si mesmo, de sua casa e principalmente de Joe Gargery, que não sabe sequer escrever, muito menos se portar em uma mesa. Pip ganha muito dinheiro e vai descer ao seu abismo interior para descobrir o que realmente importa em sua vida, bem como quem são os verdadeiros cavalheiros de uma sociedade.
Para tanto, Dickens incorpora, além da autobiografia ficcional, gêneros como a aventura, pois Pip terá de se encontrar com outros criminosos; o mistério, na busca da identidade do seu benfeitor; e o romance, a partir do relacionamento com Estella. Ao final, temos uma bela história sobre o perdão e a redenção.
Pela agilidade e pela força descritiva das suas páginas, Grandes Esperanças é um prato cheio para qualquer roteirista e há várias produções baseadas nele. A primeira, ainda do tempo do cinema mudo, é um filme de 1917, dirigido por Robert G. Vignola e Paul West. A mais recente é uma adaptação dirigida por Mike Newell. Mas o melhor fica com a do genial David Lean (A Ponte do Rio Kwai, 1957; Lawrence da Arábia, 1962; Doutor Jivago, 1965), vencedora do Oscar de Melhor Direção de Arte, e também de Fotografia, em 1948.
Certamente, muitas outras produções audiovisuais virão. Dickens consegue explorar como ninguém o universo da infância, trazendo valiosas lições morais. E ele o faz de maneira surpreendente, a partir de personagens aparentemente distantes de nós. Assim, antes de nossos antigos pecados se tornarem verdadeiros traumas, ler Dickens pode ser uma maneira muito mais interessante de entendê-los.
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