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Até o último mês de setembro não existia um único produto nos serviços de streaming que traduzisse a importância de Chico Anysio (1931-2012) para o humor brasileiro, o que me levou a resenhar um tímido filme sobre sua carreira lançado em 2006 pelo seu irmão, Zelito Viana. Era o que tínhamos. Poucos dias depois, o Globoplay soltou Chico Anysio: um Homem à Procura de um Personagem, série em cinco episódios que finalmente faz jus ao papel do comediante cearense na vida brasileira.
A direção é de Bruno Mazzeo, seu herdeiro mais bem-sucedido no mundo artístico, que até ameaça conduzir a série na batida estrutura de “filho em busca de compreender o pai”, mas a obra vai muito além disso. Mazzeo até aparece em cena e é ouvido entrevistando familiares e contemporâneos de Chico, o que rende momentos emocionantes para valer. Mas a beleza de Chico Anysio: um Homem à Procura de um Personagem está no riquíssimo panorama da TV, do rádio e do humor no Brasil que o produto oferece.
O primeiro capítulo revela as origens do garoto cearense, que não era muito dedicado aos estudos, mas já exibia um carisma extraordinário. Também são confirmadas as lendas de seu mulherengo pai, um abastado dono de uma empresa de ônibus, que tantas vezes foram relembradas em interações na Escolinha do Professor Raimundo. Sua projeção como galã de radionovelas, ao lado de artistas como Fernanda Montenegro (que contribui com depoimentos comoventes para a série) e a posterior transição para a iniciante TV brasileira são igualmente contemplados no ótimo episódio.
Chico Anysio: um Homem à Procura de um Personagem fica ainda mais interessante em seu segundo capítulo, que registra o comediante chegando ao seu auge, tornando-se onipresente nos programas da Rede Globo, seja com seus duzentos bem urdidos personagens, seja com comentários de cara limpa no dominical Fantástico. Talvez esteja aí a única lacuna do trabalho de Bruno Mazzeo. Com o espectador já ciente de que seu pai era um workaholic deslumbrado com o sucesso e com crises de depressão, seria o momento de esclarecer seu suposto uso rotineiro de cocaína, que volta e meia é citado em entrevistas em podcasts. Mas a relação com as drogas nunca é endereçada.
Do apogeu ao ocaso
No terceiro episódio, conhecemos o Chico amargo, que duvidava do potencial da geração de humoristas que se consolidou nos anos 90 em programas como TV Pirata e Casseta & Planeta. Para ele, não passavam de uns rapazes delirantes que só conseguiam se comunicar com a Zona Sul carioca e estavam maculando a história do humor nacional, que ele tinha erguido com muito talento e solidariedade aos pares. Seu contra-ataque foi revigorar o primeiro personagem de destaque no rádio, Professor Raimundo, num formato bem antiquado, com atores considerados ultrapassados, e emplacar um dos maiores sucessos da TV brasileira à época. Não só isso: com a Escolinha, ele também revelou grandes astros, sendo Tom Cavalcante o mais proeminente deles. Chico encerrava o século ainda na ribalta.
O quarto episódio é dedicado a espiar sua relação com as mulheres, especialmente as mães de seus filhos. Chico colecionou casamentos, mas sempre impulsionado pela ideia de ter um forte núcleo familiar, ainda que não dos mais convencionais. Seu envolvimento com a ex-ministra da Fazenda do governo Collor, Zélia Cardoso de Mello, ganha bastante destaque na série, por todas as controvérsias que a união gerou. Um dos homens mais amados do país se juntou a uma das mulheres mais odiadas do país, que anos antes havia confiscado as economias dos brasileiros.

Para não encerrar Chico Anysio: um Homem à Procura de um Personagem para baixo, com o ocaso do humorista no novo milênio, encostado pela Globo e com seguidas manifestações de muito rancor e insatisfação com os novos tempos estampadas nos jornais, Mazzeo dirige um quinto capítulo que celebra a genialidade do pai na criação de personagens. Com caracterizações marcantes e bordões que se espalhavam pelo povão, Chico realmente deixou um legado que nenhum outro artista conseguirá repetir. Os entrevistados fazem conjecturas se ele seria capaz de fazer seus tipos afeminados, travestidos, machistas ou pintados de preto no Brasil de hoje. As respostas são variadas e fazem pensar.
Mesmo quem é novo demais para ter vivido o apogeu de Chico ou que preferia o humor mais fantasioso de Jô Soares (caso do próprio Bruno Mazzeo em sua infância e meu também!) fica impressionado com a série documental. Isso porque ela mostra com precisão qual foi a dimensão dessa estrela na constelação artística brasileira. Chico consolidou formatos, ajudou financeiramente dezenas de parceiros, influenciou a maneira de pensar do povo, fez crítica política e social, deu pitacos na seleção canarinho, causou constrangimentos com sua língua solta... E fez rir. Movimentou o país de inúmeras formas. Conter as lágrimas em várias passagens se torna uma tarefa difícil. Tanto pelo gigantismo do homenageado, como pela falta que ele nos faz.
- Chico Anysio: um Homem à Procura de um Personagem
- 2025
- 5 episódios
- Classificação indicativa livre
- Disponível no Globoplay
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