Os seis novos episódios deste ano não foram suficientes para que Trey Parker e Matt Stone atacassem todos os modismos e polêmicas que assolam o debate cultural atualmente. A dupla criadora de South Park tinha mais a dizer e um prazo a cumprir, visto que o último contrato de 900 milhões de dólares prevê dois filmes ou especiais por ano até 2027, além da temporada regular da animação, que começou a ser exibida em 1997 e desde então segue desagradando o coro dos contentes. South Park: Entrando no Panderverso, recém adicionado ao catálogo do Paramount+, é o primeiro especial prometido para 2023 e oferta 48 minutos de puro deleite e gargalhadas para quem não se conforma com os rumos que a indústria audiovisual vem tomando.
Cartman inicialmente pensa que são só pesadelos, mas os sonhos recorrentes em que ele e todos os seus amiguinhos são substituídos por “mulheres não padrão” são realidade. Quer dizer, são realidade em algum multiverso. Em sua versão mulher negra, Cartman tenta avisar Kyle, Stan e Kenny do que está acontecendo, mas eles simplesmente não acreditam em papinho de multiverso – dizem que tal coisa é artifício de roteirista de cinema preguiçoso. Enquanto isso, no QG da Disney, o CEO Bob Iger se mostra preocupado com os resultados pífios dos últimos lançamentos do estúdio e com o comportamento da sócia Kathleen Kennedy, que exige que todas as produções sejam protagonizadas por mulheres e gays. Um encontro entre Cartman e Kathleen no universo 216-B acaba sendo crucial para que tudo se resolva.
O panderverso do título do especial alude ao verbo em inglês “to pander”, que no contexto do cinema tem a ver com “apelar para uma larga audiência”. Isso é algo que Hollywood pratica quando relança filmes do passado que foram campeões de bilheteria e podem fazer sucesso tanto com o público nostálgico quanto com quem é mais novo e não vivenciou os fenômenos. A tendência, que já é questionável, fica ainda pior quando heróis e personagens icônicos são substituídos por outros sexos e etnias para se encaixar em pleitos supostamente progressistas, assim promovendo “igualdade” e “diversidade”. Não sem razão, a tradução brasileira do especial transformou em “lacraverso” a palavra “panderverse” quando ela aparece nos diálogos. Pena que esse genial neologismo “lacraverso” não foi bancado no título do desenho, algo que comunicaria a ideia muito melhor.
Um forno que vira portal
Enquanto as tretas se desenvolvem no “lacraverso”, Randy Marsh, o pai de Stan, encontra dificuldade para arrumar a porta do forno de seu fogão. Os profissionais que consertam tudo viraram artigo de luxo em South Park. Como ninguém mais sabe fazer trabalhos braçais, as pessoas que detém esse conhecimento passam a cobrar caro pelos serviços, e acabam levando a cidadezinha ao colapso por escassez de mão de obra. Não há sequer imigrantes ilegais disponíveis para os reparos domésticos. Os moradores se revoltam contra as universidades locais, que os prepararam para atividades que não possuem mais valor num mundo em que a Inteligência Artificial avança. Já os dois principais “faz-tudo” da cidade viram multibilionários, com dinheiro de sobra para investir em programas espaciais e até marcar uma luta de MMA entre si. Isso mesmo, o desenho faz essa troça com Elon Musk e Mark Zuckerberg.
Essa história paralela é importante para South Park: Entrando no Panderverso porque é pelo forninho de porta quebrada de Randy Marsh que será construído o portal para reorganizar os multiversos (e Randy consegue trazer uns eletricistas e encanadores de outro universo para que a paz volte a reinar nos lares da cidade). Mas o mais importante para encerrar o “lacraverso” é o embate entre Cartman e a executiva que só quer colocar mulheres e gays em tudo. Trey Parker e Matt Stone cutucam a Disney com força ao mostrar os personagens verbalizando que é muita apelação apostar em tantos remakes de filmes antigos em vez de investir em produtos novos. Essa parece ser a mensagem principal do especial, ainda que também seja bonito o entendimento entre o menino (que odeia as adaptações da Disney) e a executiva, que confessa que esse ódio, expresso em cartas e comentários de redes sociais, levou a Disney a dobrar a aposta em suas lacradas. Kathleen chega a perguntar para Cartman: “Sabe o que é receber 10 mil cartas te xingando?”. No que ele confessa: “Não foram 10 mil. Acredito ter escrito entre 12 e 13 mil”.
Mais uma vez, os criadores de South Park lavam a alma de quem acompanha o desenho ao longo desses 26 anos. E por mais que a lacração da Disney tenha entrado em foco dessa vez, não dá para ignorar que Cartman representa aquele espectador que encontra problema em tudo. Qualquer personagem que não seja homem e branco vira motivo para aflição, denúncia, suspeita de conspiração woke. No final do dia, fica parecendo que a Disney é a grande vilã do planeta e é a única responsável por tornar a vida desse cidadão infeliz, e não algo muito mais profundo e complexo, que talvez esbarre em alguns preconceitos, sim. É por essas e outras que um desenho tosco de quatro menininhos que vivem nos cafundós do estado do Colorado permanece vital para que tenhamos a compreensão da cloaca onde nos metemos.
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