Nanni Moretti sempre foi um cineasta singular. Diferentemente de 99% dos diretores, que filmam com regularidade e aceitam convites formatados por estúdios e produtoras, o italiano de 71 anos tem o hábito de só pegar a câmera quando tem algo a dizer, quando algum assunto está lhe afligindo muito, o que resulta numa filmografia das mais particulares. Essa autoralidade superlativa foi quebrada em 2021, quando pela primeira vez o veterano adaptou o trabalho de outro artista, mais precisamente um romance do israelense Eshkol Nevo, dando origem ao filme Tre Piani.
A pandemia de Covid-19 prejudicou a apreciação do trabalho nas salas de cinema. Mesmo com uma boa recepção no Festival de Cannes, com direito a onze minutos de aplausos ao final da principal sessão, Tre Piani não conquistou a projeção que merecia. Depois dele, Moretti já lançou outro filme, O Melhor Está por Vir (2023), que repercutiu bem mais, até por mostrar o ator e diretor num terreno que lhe é bastante familiar e que agrada aos seus fãs de carteirinha: a do crítico dos modismos do momento, abusando do sarcasmo e da metalinguagem.
Tre Piani tem mais a ver com outra faceta do italiano, aquela em que ele reflete sobre relações familiares com sinceridade dilacerante. Quem se apaixonou pela sua obra a partir de O Quarto do Filho (2001), deve procurar esse filme realizado 20 anos depois, disponível no catálogo do streaming Reserva Imovision, que pode ser acessado pelo Prime Video. São três histórias íntimas e entrelaçadas, vividas por famílias que habitam o mesmo condomínio em Roma (no livro original, é em Tel Aviv). Tre Piani deveria ter sido traduzido como Três Andares, mas inexplicavelmente o título em italiano foi mantido.
Atropelamento e fuga
A primeira história desenvolvida é a do filho de um casal de juízes que atropela e mata uma moça retornando embriagado para o condomínio. Os pais – interpretados por Nanni Moretti e Margherita Buy – testemunham a tragédia e imediatamente começam a conjecturar sobre as consequências para o rapaz, que além de não demonstrar compaixão pela vítima, ainda espera ser salvo pelo fato de integrar uma família influente na Justiça italiana. Mas o pai não aceita mexer nenhum pauzinho para livrar o filho da pena de cinco anos de prisão e, após ser agredido pelo garoto, exige que a esposa decida de qual lado ficará.
Num outro apartamento, um pai chamado Lucio vive uma situação perturbadora. Ele desconfia que a filha Francesca, de 7 anos, tenha sido abusada por um idoso de nome Renato, que sempre estava disponível para pajear a menina na ausência dos pais. Lucio é consumido pela suspeita e se aproveita do carinho que uma neta adolescente de Renato sente por ele para investigar o aposentado. O desenrolar dos fatos lembra o tipo de conto moral que deu fama ao nosso Nelson Rodrigues.
A terceira narrativa foca a jovem mãe Monica, que cuida da pequena Beatrice praticamente sozinha, já que o esposo e pai Giorgio passa longas temporadas trabalhando fora de Roma. O abandono leva Monica a delirar sobre situações cotidianas e a externar o medo de terminar louca e vivendo num asilo como a sua própria progenitora.
Tre Piani realiza saltos de cinco em cinco anos para relatar como os dilemas se acomodaram, como as famílias equacionaram suas dores, como cada indivíduo trilhou o seu caminho. A aposta de Moretti é quase sempre no entendimento entre as partes. Soluções amargas não fazem parte de sua cartilha, ainda que muitos de seus cenários sejam inegavelmente tristes. Em algum momento, a gente sabe que ele vai botar os atores para dançar ou fornecer algum alívio musical, elevando assim a atmosfera da história contada. Em Tre Piani, mesmo sendo a primeira vez em que ele não trabalha com um roteiro de próprio punho, as coisas também são resolvidas desse modo. E o espectador termina a jornada com o coração devidamente aquecido.
- Tre Piani
- 2021
- 117 minutos
- Indicado para maiores de 14 anos
- Disponível no Reserva Imovision
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