A frota de veículos de Curitiba voltou a registrar recordes em 2019. Segundo o dado mais recente do Detran, de abril, são 1.420.399 veículos, entre automóveis, motos, utilitários, caminhões e ônibus. O número mostra uma reversão da tendência de baixa dos últimos anos, que era decorrente da crise econômica brasileira, e acende um alerta para o nível de motorização na cidade que ainda se vende como ecológica e sustentável.
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Conforme a pesquisa Origem e Destino divulgada em novembro de 2017, com dados sobre mobilidade de Curitiba e mais 16 municípios da Região Metropolitana, 66% das viagens motorizadas dos curitibanos são em veículos individuais – apenas 34% em transporte coletivo. Em São Paulo, uma das cidades mais motorizadas do mundo, 45,7% das viagens motorizadas em 2017 foram em transporte individual; o ônibus ainda liderava, com 54,2%.
Há sinais de que o transporte coletivo perdeu ainda mais terreno recentemente, pela presença cada vez maior do transporte feito por carros de aplicativo. A grande oferta e preço baixo estariam atraindo pessoas que preferem deixar o carro em casa – por isso o impacto no trânsito não é negativo, conforme a Superintendência de Trânsito de Curitiba (Setran).
Os dados não são conclusivos, pois as empresas de aplicativo que atuam em Curitiba, como Uber, 99 e Cabify, não revelam números relativos ao negócio. Não se sabe ao certo quantos motoristas atuam em Curitiba, mas a arrecadação da prefeitura de Curitiba mostra alta: no primeiro quadrimestre de 2019, as administradoras de tecnologia em transporte compartilhado (ATTCs) pagaram R$ 6,55 milhões em uma taxa chamada preço público. O valor é 60% maior do que o arrecadado no mesmo período de 2018 e tem relação com o total do percurso realizado. Os motoristas de aplicativo em Curitiba rodaram 106,14 milhões de quilômetros nos quatro primeiros meses de 2019, ante 65,14 milhões de quilômetros no mesmo período do ano passado.
A prefeitura estima em 12 mil motoristas cadastrados, mas o número pode ser bem maior – não há limitação na legislação municipal. A empresa Uber, por exemplo, afirma que em todo o Brasil são cerca de 600 mil motoristas cadastrados, e que o número de viagens tem crescido de forma exponencial: foram necessários três anos e meio de operação (de junho de 2014 a janeiro de 2018) para a empresa atingir a marca de 1 bilhão de viagens no país. Passados mais um ano e meio, a Uber já chega a 2 bilhões de viagens.
A legislação de Curitiba foi criada justamente com o objetivo de cobrar dos ATTCs pela “utilização intensiva e lucrativa da infraestrutura pública por agentes privados” e o valor arrecadado em quatro meses já supera o montante pago pelos 3 mil taxistas da capital ao longo do ano inteiro – cerca de R$ 4,5 milhões, entre valores de outorga (R$ 1.350,00 por táxi) e taxa de administração (R$ 162).
Impacto
O valor pago, porém, não cobre todos os impactos diretos e indiretos do aumento da motorização individual. “Com certeza, a chegada do serviço de aplicativos foi muito bem aceita. Mas uma ideia tão extraordinária tem seu lado negativo. Está tão barato que se tornou acessível para todos usarem. E a comodidade é muito grande, é um serviço porta a porta. Vai chegar uma hora em que ninguém vai querer usar ônibus”, avalia a professora associada do Departamento de Transportes da UFPR Marcia de Andrade Pereira Bernardinis.
Para ela, a situação é muito grave, e em pouco tempo o trânsito pode se tornar caótico. “Independentemente se há aumento de tráfego ou não, a questão é que não vamos alcançar a mobilidade sustentável utilizando o transporte motorizado individual. Com ele, há aumento dos acidentes de trânsito, mais poluição e aumento do custo para a saúde”, acrescenta Marcia, que tem doutorado em engenharia de transportes.
As Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana, por sua vez, questionam a falta de regulamentação em alguns pontos dos serviços de aplicativos. Em entrevista por e-mail, o diretor executivo do grupo, Luiz Alberto Lenz César, afirma que o transporte coletivo precisa atender a demanda de grande parte do território urbano, ter preços módicos e ser ofertado de forma contínua, com rotas e horários definidos pelo poder público. Como os aplicativos escolhem as áreas em que atendem, atuam com preço variável e podem se concentrar em “linhas” mais lucrativas, isso configura, segundo ele, competição desigual.
No cenário atual, a tendência é de queda de usuários no transporte coletivo, o que acaba elevando a tarifa e afastando mais usuários, criando um círculo vicioso. Outra consequência é o possível aumento de congestionamentos. “Com isso, os ônibus ficam presos no trânsito, com a consequente diminuição da velocidade média. Menos velocidade significa mais custo, pois você precisa de mais ônibus e mão de obra para atender uma determinada frequência”, afirma.
Das empresas de aplicativo procuradas pela reportagem, a Uber enviou nota em que destaca que Curitiba segue uma tendência mundial de usar carro compartilhado em vez de possuir um. A empresa apresenta alguns dados do Denatran que mostra queda de 34% no número de novas habilitações para jovens de 18 a 21 anos no Paraná, no período entre 2009 e 2018. A nota destaca ainda o serviço Uber Juntos, disponível em Curitiba desde novembro de 2018, que permite o compartilhamento de viagens para destinos próximos, “aumentando a eficiência do transporte individual privado”.
Por fim, a empresa ressalta que todos os modais são importantes para as cidades. “Ao lado de especialistas no assunto, acreditamos que o futuro da mobilidade urbana será compartilhado em vários modos: centrado no transporte público e complementado por bicicletas compartilhadas, serviços sob demanda como Uber e táxis, assim como outras soluções que ainda estão por surgir no ambiente de inovação digital”, informou a Uber em nota enviada pela assessoria de imprensa.
Política pública é a solução
A professora da UFPR Marcia de Andrade Pereira Bernardinis defende a implantação de novas políticas públicas para priorizar o transporte não motorizado. Ela destaca que a oferta de serviços de bicicleta e patinetes compartilhado é afetado pela falta de ciclovias na região central de Curitiba. “A cidade precisa se preparar para isso, e não ficar pavimentando rua. É uma obrigação promover o deslocamento de maneira eficiente”, afirma.
Marcia, que é doutora em engenharia de transportes, também sugere a implantação de medidas radicais para restringir o uso de veículos. “A vantagem de usar carro de aplicativo é muito grande. Tenho a chance de ser levada porta a porta da origem ao destino. Precisamos de mais calçadões, de ruas fechadas ao transporte motorizado”, exemplifica.
O diretor executivo das Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana, Luiz Alberto Lenz César, ressalta que, além de atender todo o território, o transporte público concede gratuidade para 17% dos usuários. “É fundamental que os governos tenham políticas públicas de prioridade ao transporte coletivo, afinal ele transporta mais pessoas, polui muito menos e contribui para um trânsito sem congestionamentos”, afirma.
Lenz César diz que as empresas de ônibus estão investindo, e que a queda no número de passageiros está num ritmo menor. “De 2016 para 2017, Curitiba perdeu quase 20 milhões de passageiros. De 2017 para 2018, a queda foi de cerca de 3 milhões. Acreditamos que isso se deve à renovação da frota, mais segurança (veículos novos vêm equipados com câmeras), criação de novas linhas (Ligeirão Santa Cândida-Praça do Japão, por exemplo) e retomadas de integrações com a Região Metropolitana”, afirmou. Ele também destaca a operação fura-catraca, para minimizar o prejuízo com a falta de pagamento da passagem, mas diz que o fundamental é a retomada do crescimento da economia. “A maior parte dessa perda de passageiros ocorre por causa da crise econômica, quando as pessoas perdem o vale-transporte”, explica.
No mundo, aplicativos colecionam experiências de “amor” e “ódio”
A cidade de Nova York é palco de uma das maiores brigas do poder público com as empresas de carros de aplicativo. Em agosto de 2018, foi aprovado o congelamento de novas licenças de veículos, um prazo em que a prefeitura pretendia estudar os impactos do serviço no trânsito local. Também foi instituído um pagamento mínimo por hora para os motoristas e uma limitação para transitar por Manhattan com o carro sem passageiro.
As empresas que atuam na cidade, como Uber e Lyft, questionaram as medidas judicialmente, mas a cidade segue firme na sua determinação. Em 12 de junho, a restrição foi prorrogada indefinidamente (com exceção de carros acessíveis para cadeiras de rodas). “Por muito tempo, as empresas de aplicativos se aproveitaram de motoristas esforçados, sufocando nossas ruas com congestionamentos e levando os trabalhadores à pobreza”, afirmou no Twitter o prefeito Bill de Blasio.
Nem tudo é guerra, porém. Em algumas cidades, as empresas de aplicativo ofertam serviço de ônibus. A prefeitura de Innisfil, cidade canadense com 36 mil habitantes, fez as contas e resolveu pagar a Uber pelo transporte coletivo em vans, em vez de criar um sistema próprio – a cidade era servida apenas por ônibus regionais, com poucas paradas. A experiência deu certo, mas a demanda alta levou à criação de algumas regras, que agora são criticadas pelos moradores, conforme reportagem do site Citylabs. Por exemplo: a limitação no número de viagens mensais, para permitir que os moradores sejam levados a serviços essenciais, foi justificada porque havia pessoas que usavam o transporte para ir a cafeterias. “Nós não devíamos ser criticados pelo lugar aonde estamos indo”, disse uma moradora ao site Citylabs.
Em Goiânia, a concessionária de ônibus HP Transportes lançou no início de 2019 um serviço de ônibus acionado por aplicativo, em determinadas áreas da cidade, batizado de CityBus 2.0. A avaliação é positiva e no início de junho a empresa divulgou novas vagas de emprego para motoristas do veículo por aplicativo, indicando a expansão do serviço.
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