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Briga na cozinha

Entregadores de aplicativos de comida fazem greve neste sábado; entenda o debate

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Duas pizzas pelo valor de uma, frete grátis e ainda um refrigerante de brinde. Promoções como essa são comuns em aplicativos de comida e, embora sejam muito atrativas para os clientes, surge a dúvida: a conta fecha? A popular expressão "não existe almoço grátis" nunca fez tanto sentido como no mercado dos aplicativos de comida.

Entregadores, que anunciaram uma nova paralisação para sábado (25), e donos de bares e restaurantes reclamam que são eles que pagam a conta oculta desse modelo de negócio que, ao mesmo tempo que revolucionou o setor da alimentação fora do lar, criou novas tensões trabalhistas e uma concorrência cruel.

“Os restaurantes pagam um custo muito alto, os entregadores recebem muito pouco e os intermediários [os apps] estão ganhando uma margem extremamente alta”, resume Juliana Inhasz, professora de economia do Insper. “Essa paralisação traz a reflexão: qual grau de responsabilidade essas empresas têm?”, questiona.

No Brasil, 3,8 milhões de pessoas trabalham com aplicativos, de acordo com o Instituto Locomotiva. Para 56% deles, fazer entrega é a principal fonte de renda. Já segundo o iFood, a principal plataforma do país, 70% de seus entregadores trabalham de 4 a 5 horas por semana, o que indicaria um complemento de renda para a maioria.

O mercado de delivery nacional faturou R$ 15 bilhões em 2019, com aumento de 20% em relação ao ano anterior, de acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Para 2020, a expectativa é registrar R$ 18 bilhões. O montante inclui a entrega por aplicativos, telefone e retirada no balcão.

O bolo dos delivery via aplicativo é repartido entre a cearense iFood, a americana Uber Eats, a colombiana Rappi e a curitibana James Delivery, controlada pelo Grupo Pão de Açúcar, entre outras.

"Os aplicativos dão prejuízo, mas não são coitadinhos. Estão em fase de expansão da operação e contam com investidores endinheirados, ávidos para lucrar quando dominarem um mercado consolidado", explica o economista e colunista da Gazeta do Povo, Pedro Menezes.

"O iFood, por exemplo, usa o dinheiro destes investidores para comprar concorrentes e ganhar poder de mercado. Um dos objetivos de aquisições do tipo é justamente aumentar o poder de barganha da empresa na negociação com os entregadores", afirma Menezes.

Longas jornadas e ganhos baixos

Quando um pedido pipoca na tela do celular começa a jornada do entregador. Quem determina quanto ele vai ganhar pela corrida é o algoritmo que leva em conta fatores como cidade, dia e horário da semana e o tipo de veículo. Quando a demanda aumenta, a tarifa entra na chamada "dinâmica" que multiplica os ganhos.

Mas quem pensa que a pandemia aumentou o consumo de comida via delivery está enganado. De acordo com pesquisa do Instituto Locomotiva, 46% dos motoboys passaram a ganhar menos nos últimos meses.

“Está pior do que nunca. Precisa de uma taxa de entrega que anime a gente para trabalhar. Estamos na rua arriscando a vida”, reclama o haitiano Rony Olibrice, 29, que há três anos trabalha como motoboy em Curitiba.

Se antes da pandemia, ele ganhava R$ 700 a R$ 800 por semana trabalhando todos os dias das 14h às 23h, hoje Olibrice diz que o lucro serve apenas para cobrir o custo da gasolina. Quando a moto deu pane em maio, ele desembolsou R$ 500 para o conserto.

Rappi diz que disponibiliza parcerias que possibilitam desconto na troca de óleo e na compra de rastreador de veículos. Com 200 mil entregadores cadastrados em toda a América Latina, o app afirma que 75% de seus entregadores no Brasil ganham mais de R$ 18 por hora e que, entre fevereiro e junho, o valor médio das gorjetas subiu 238%.

Já o iFood informa que tem 170 mil entregadores cadastrados e que paga uma tarifa mínima de R$ 5 independentemente da distância, além de uma taxa adicional para corridas acima de 5 quilômetros. Segundo a empresa, desde maio o ganho por hora on-line (enquanto o entregador está aguardando pedidos ou pode estar logados em outras plataformas) chegou a cerca de R$ 9,50, o dobro do valor da hora calculado pelo salário mínimo.

Os bloqueios imotivados são uma das principais reclamações e a pior punição para os entregadores que podem ser suspensos arbitrariamente por horas ou até dias. Isso ocorre por vários motivos, desde um atraso na entrega até uma reclamação, que pode ser infundada, por parte do cliente.

"É muito pouco inteligente da minha parte fazer um bloqueio injusto porque quando faço isso, perco a chance de ter uma pessoa prestando serviço na plataforma. Se a gente comete um erro, a gente corrige", rebate Diego Barreto, vice-presidente da estratégia e finanças do iFood.

Um entregador, que pediu para permanecer anônimo, relata que trabalhou por dois anos antes de sofrer um acidente de motocicleta no final do ano passado, enquanto estava em serviço. Fraturou uma vértebra, ficou alguns dias no hospital e desembolsou R$ 3 mil para consertar a moto. Tudo do seu bolso.

Rappi e iFood informam que oferecem seguros para acidente pessoal, incluindo a volta para casa, e reembolso para despesas médicas hospitalares e odontológicas.

"Queremos o aumento da tarifa por quilômetro rodado, que as empresas de aplicativos paguem nossas refeições e o fim do bloqueio indevido", afirma Lujaye Santos, um dos entregadores que organizou a greve em Curitiba.

A categoria está discutindo os próximos passos. "A classe já descartou que não quer a volta da CLT. O que seria viável é montar uma cooperativa para bater de frente com as empresas de aplicativos", explica Santos.

A presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, afirmou ao jornal Estado de S. Paulo que o entregador precisa de garantias mínimas de acesso à saúde e limite de jornada. "Não é porque ele não é empregado (com carteira assinada) que pode trabalhar 18 horas, 20 horas (por dia)", disse.

"Nós devemos garantir a essa categoria de trabalhadores autônomos um patamar civilizatório mínimo. É preciso que todos os trabalhadores que prestam serviço de forma autônoma tenham resguardada sua condição previdenciária, não só aposentadoria, mas a garantia de que, se estiverem enfermos ou sofrerem um acidente, terão remuneração pela Previdência Social. É preciso garantir acesso ao sistema de saúde", completou.

Os termos de uso dos apps deixam claro que os entregadores não têm vínculo trabalhista com as empresas. A promessa é que, como autônomos, eles têm a liberdade de trabalhar no horário que preferirem e para quantos apps quiserem. Como ônus, eles não têm benefícios como férias, 13º salário, vale refeição ou plano de saúde.

Barreto reconhece que é preciso avançar na legislação trabalhista para oferecer condições intermediárias entre o vácuo atual e a CLT. "Algo que diga: estamos protegendo sem retirar a flexibilidade que a economia sob demanda tem", afirma o executivo (leia a entrevista completa).

Empresários também estão insatisfeitos

A insatisfação não é exclusiva dos entregadores. Empresários também estão se unindo para mudar as regras do jogo. A Abrasel pressiona para que os apps permitam o cadastro apenas de estabelecimentos com alvará e licença sanitária, o que impediria a entrada de cozinhas clandestinas.

“Hoje qualquer pessoa que cozinha em casa consegue entrar no iFood e entregar, sem pagar impostos, sem vigilância sanitária, sem curso de boas práticas”, afirma Nelson Goulart, presidente da entidade no Paraná.

“Queremos que seja incluído na página do estabelecimento o número da certidão da vigilância sanitária, o endereço e que emitam nota”, complementa o empresário.

O iFood afirma que não tem competência técnica para fazer a fiscalização, que cabe à Vigilância Sanitária coibir eventuais irregularidades e que os estabelecimentos que não respeitam as regras são banidos da plataforma.

Os empresários exigem também mais transparência sobre o funcionamento do algoritmo que escolhe quais restaurantes ganham destaque e quais acabam no final da lista. A posição faz toda a diferença na hora de vender e o restaurante que oferecer uma promoção ganha um lugar ao sol.

“Se você não dá descontos, você não vende. A concorrência é violentíssima”, afirma Daniel Mocellin, dono da hamburgueria Whatafuck e da pizzaria Mathilda, ambas em Curitiba.

Barreto, do iFood, explica que o algoritmo monta a lista de exibição dos restaurantes com base numa série de fatores como a nota dada pelos clientes e o interesse que o estabelecimento desperta. A plataforma conta com 160 mil restaurantes cadastrados.

Para se tornar independente das plataformas, Mocellin pretender lançar em breve seu próprio aplicativo. Muitos restaurantes, com uma clientela consolidada e uma boa base de seguidores nas redes sociais, já adotaram a ideia.

Oferecer um desconto pode turbinar as vendas, mas reduz a margem de lucro, em muitos casos já bastante apertada. Ao ponto que o pedido pode até dar prejuízo. “Tenho vários produtos que, se eu ofereço desconto, tenho prejuízo operacional, ou seja, não dá dinheiro”, relata Yuri Rodrigues de Melo, dono do restaurante Loop Food, em Curitiba, que vende sua comida por meio do iFood.

Ele cita como exemplo um sanduíche de R$ 28,50. Ao aplicar uma promoção de R$ 10, o valor vai para R$ 18,50. Ainda é preciso descontar os 20% da comissão do app (R$ 5,70), o que reduz o preço para R$ 12,80. Caso ele ainda disponibilize frete grátis de R$ 5,99, o ganho bruto para o restaurante ficará em R$ 6,81. Nesse valor tem que caber ainda os custos dos insumos, mão de obra, gás, luz e margem de lucro.

É claro que os os apps trazem também vantagens para os donos de restaurantes. Os estabelecimentos ficam num marketplace, ou seja, numa plataforma de vendas que conta com investimento em propaganda, marketing, uma estrutura de pagamentos pronta e entregadores sem vínculo empregatício, o que barateia o custo.

Mas, essa dependência dos aplicativos acarreta algumas questões, segundo os restaurantes. “Quando o cliente vira cliente do aplicativo e deixa de ser nosso, a gente perde nosso elo com ele. Você fica muito refém do aplicativo”, explica Beto Madalosso, dono do restaurante Carlo e da pizzaria Madá, em Curitiba.

Empresários reclamam também das comissões cobradas pelos apps que "corroem" o lucro. Elas oscilam entre 25% e 30%, segundo relatos. O iFood nega que aplique taxas tão elevadas e explica que a tarifa inicial varia de 9% a 12%, mas que pode aumentar com base nos serviços contratados.

Uber Eats diz que "as taxas são negociadas caso a caso com os restaurantes parceiros, e nelas já estão inclusas a taxa de cartão de crédito, a intermediação com os entregadores parceiros, toda a tecnologia do algoritmo e inteligência artificial".

Socorro na pandemia

Todas as empresas afirmam que desde o início da pandemia têm distribuído kits com máscaras e álcool em gel aos entregadores e que têm constituído fundos de auxílio financeiro para os parceiros contaminados pelo coronavírus.

Questionados pela reportagem, Uber Eats, iFood e Rappi não divulgaram dados sobre faturamento e lucro. O James Delivery não respondeu ao contato.

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