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Contas públicas

Arrecadação bate recorde, mas nem assim governo tira contas do vermelho

Contas do governo ficam no vermelho mesmo com arrecadação recorde
Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad: dificuldade do governo em fechar contas e declarações do presidente contra o equilíbrio fiscal ajudam a manter juros nas alturas. (Foto: )

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Os números recordes da arrecadação tributária no primeiro semestre não foram suficientes para equilibrar as contas da União e demonstram a dificuldade que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá para cumprir as metas fiscais.

Sem uma contrapartida do lado das despesas, ou seja, um corte efetivo de gastos, a regra fiscal estará comprometida, avaliam especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.

As dificuldades da gestão petista para cumprir o arcabouço que ela mesma propôs, somadas às declarações em que Lula demonstra fazer pouco caso do equilíbrio fiscal, estão entre as razões que ajudam a manter os juros nas alturas. Nesta quarta (31), o Banco Central manteve a taxa básica (Selic) em 10,5% pela segunda vez consecutiva, e deu a entender que ela não cairá tão cedo.

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De janeiro a junho de 2024, a arrecadação alcançou R$ 1,28 trilhão, um acréscimo real de 9,08% em relação ao mesmo período de 2023. Trata-se da maior receita para o período desde o início da série histórica, em 1995, segundo a Receita Federal.

Só em junho, o montante alcançou R$ 208,8 bilhões, alta de 11,02% ante o mesmo período de 2023, superando o recorde anterior para o mês, de R$ 194,6 bilhões, em 2022.

O desempenho da arrecadação se deve à aceleração da economia e do mercado de trabalho, ao retorno da tributação do PIS/Cofins sobre combustíveis e às medidas arrecadatórias aprovadas no Congresso no ano passado, como a taxação de fundos offshore e fechados. O esforço arrecadatório do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, rendeu uma enxurrada de memes e o apelido de "Taxad".

Apesar disso, as projeções de despesas totais da União aumentaram em R$ 19,4 bilhões em revisão feita após o fechamento do 3.º bimestre, levando as contas públicas ao limite de tolerância da meta do arcabouço fiscal – no relatório bimestral, o governo previu um rombo de R$ 28,8 bilhões, o máximo permitido pela regra fiscal para este ano.

Os resultados já verificados são alarmantes: com receita líquida de R$ 1,051 trilhão e despesas primárias de R$ 1,120 trilhão, o governo fechou o primeiro semestre com déficit primário de R$ 68,7 bilhões, o pior desde 2020. Apenas em junho, as despesas superaram as receitas em R$ 38,8 bilhões, segundo o Tesouro.

O aumento de gastos neste ano é puxado principalmente pela Previdência Social e levou ao bloqueio de R$ 11,2 bilhões no Orçamento. O governo também promoveu um contingenciamento de R$ 3,8 bilhões, para cumprir a meta anual de resultado primário. Com isso, o congelamento total será de R$ 15 bilhões.

As áreas mais afetadas pela retenção de verbas são o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com R$ 4,5 bilhões congelados, e o Ministério da Saúde (R$ 4,4 bilhões).

"Com a contenção, o governo conseguiu evitar a fervura, mas a água continua esquentando", avalia Murilo Viana, especialista em contas públicas. "O cenário é de muita incerteza em relação à continuidade da arrecadação e cortar despesas para este governo não é trivial." 

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Receitas incertas, despesas em alta

Em relação às incertezas da arrecadação, Viana cita principalmente as estimativas iniciais sobre o Conselho Administrativo de Receitas Fiscais (Carf). O governo estimava, no início do ano, arrecadar R$ 55,6 bilhões com retorno do chamado "voto de qualidade" nas disputas tributárias. Ainda não entrou nada. Na última projeção, o valor foi reduzido para R$ 37,7 bilhões.

"Desde a divulgação da LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias], nós já havíamos apontado que provavelmente a despesa estava subestimada e as receitas, superestimadas", diz Viana. "Por isso, é importante atacar a despesa, que é onde o governo tem mais controle."

Juliana Inhasz, economista do Insper, lembra que o Orçamento é muito engessado, com mais de 90% das despesas obrigatórias, ou seja, já carimbadas para destinatários específicos.“O problema é que o cobertor é muito curto”, diz. “A parte discricionária [de livre manejo] é muito pequena e ainda, dentro dessa parte, o governo se compromete muito com base eleitoral, cedendo recursos para emendas parlamentares. Isso deve se intensificar com o período eleitoral e dificultar o cumprimento da meta do arcabouço”, diz a economista.

Governo ensaia revisão de gastos

Do lado das despesas, o governo tem acenado com a revisão de fraudes em benefícios sociais. Entre eles, o auxílio-doença, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o seguro-defeso, pago a pescadores artesanais, e o Proagro, espécie de seguro para agricultura familiar.

“São iniciativas positivas, mas não são corte de gastos”, avalia Viana. "Isso é muito mais uma política de gestão, que deveria ser permanente, do que uma política de ajuste estrutural.”

Por outro lado, existe um crescimento automático das despesas, principalmente por conta da política de valorização do salário mínimo, que afeta os benefícios previdenciários, como o BPC, seguro-desemprego e abono salarial. A desvinculação do salário mínimo, no entanto, já foi descartada pelo governo. “Já existe um embate interno do governo com setores do Partido dos Trabalhadores que sequer veem a necessidade de ajuste fiscal”, explica Viana. “Imagine tocar numa política tão cara ao partido, como a do salário mínimo”.

Revisão de gastos mínimos poderia aliviar as contas públicas

O mesmo raciocínio é aplicado à revisão dos mínimos constitucionais de saúde e educação, outra medida que poderia aliviar as contas públicas.

Antes da entrada em vigor do arcabouço fiscal, o teto de gastos, aprovado no governo Michel Temer (MDB), determinava que os pisos das rubricas fossem corrigidos, ano a ano, apenas pela inflação. Com o fim do teto de gastos, voltaram a valer as previsões constitucionais para as despesas.

Assim, os gastos com saúde precisam representar ao menos 15% da receita corrente líquida do governo federal. E as despesas com educação devem ser de 18% da receita líquida de impostos.

A regra é inconsistente com o arcabouço fiscal, que prevê que as despesas totais do governo devem crescer entre 0,6% e 2,5% acima da inflação a cada ano.

“O gasto com as duas rubricas vem crescendo acima do limite regra. Isso também vai pressionar o espaço fiscal do governo para os próximos anos”, explica Viana.

Com a revisão dos mínimos constitucionais, o espaço adicional para despesas discricionárias seria mínimo, de R$ 3 bilhões. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, chegou a iniciar um debate sobre a desvinculação, mas foi desautorizada e depois aliviou o discurso. “É outra bandeira que bate de frente com o PT”, diz Viana.

Responsabilidade fiscal está na berlinda

Juliana Inhasz acredita que, ao invés de corte de despesas, os esforços do governo deverão se concentrar em recompor as receitas perdidas com subsídios e desonerações a diversos setores.

A estimativa de déficit apresentada para este ano não considera a compensação da desoneração da folha salarial de 17 setores e de municípios com menos de 156 mil habitantes.

O assunto vem sendo discutido no Congresso, que tem até 11 de setembro para apresentar uma forma de compensação da renúncia fiscal, que segundo a Receita Federal soma R$ 26,2 bilhões.

Independentemente do resultado, para manter a credibilidade, a economista afirma que o governo deverá demonstrar um esforço de ajuste para as próximas duas possibilidades de revisão de meta até o final do ano.

“Até lá, ficarão mais claros os sinais sobre o comprometimento do governo com as contas”, avalia Inhasz, lembrando que o mercado chegou a duvidar que Lula autorizasse o contingenciamento de gastos.

Depois de negar a necessidade de ajuste, o presidente ajustou o discurso e se comprometeu com a meta do arcabouço fiscal. Em pronunciamento à nação no domingo (28), afirmou que “não abre mão da responsabilidade fiscal”.

Para Inhasz, o tema ainda está na berlinda. “O presidente diz algumas coisas, mas dá sinais trocados. Ele se alinha ao bloqueio, mas no mesmo dia tenta responsabilizar o presidente do Banco Central por algo que não diz respeito a ele. Culpa alguém que está de fora dessa história".

Dias antes, na segunda-feira (22) e na sexta-feira (26), Lula tinha voltado à carga nas críticas ao Banco Central e ao presidente da instituição, Roberto Campos Neto, a quem responsabiliza pelo alto patamar da taxa de juros. Lula disse que Campos Neto não tem “respeito” pela população pobre que recebe salário mínimo.

"O presidente dá sinais que bagunçam muito a percepção do mercado", afirma a economista do Insper. "Muito provavelmente veremos novamente um estresse maior do mercado se os ataques continuarem e os resultados concretos não forem entregues."

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