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Estabelecido em agosto do ano passado, através de uma medida provisória, o programa Casa Verde e Amarela está em pleno funcionamento desde janeiro. Após a aprovação no Congresso, o governo de Jair Bolsonaro publicou um decreto regulamentando a iniciativa. O Casa Verde e Amarela substitui o programa Minha Casa Minha Vida, implementado na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2009.
De acordo com o governo, o programa vai “facilitar o acesso da população a uma moradia digna, garantindo mais qualidade de vida”. A meta é atender 1,6 milhão de famílias de baixa renda até 2024, por meio de financiamentos com taxas de juros mais baixas. A iniciativa também contempla a regularização fundiária e a melhoria de residências.
Especialistas do setor de habitação, entretanto, têm criticado a nova configuração do programa. O argumento é de que as novas regras deixam desamparadas as famílias de renda mais baixa – justamente as que mais sofrem com o déficit habitacional no país.
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, por outro lado, o Casa Verde e Amarela "amplia as possibilidades de atendimento às famílias que antes se enquadravam como baixa renda" (veja a íntegra do posicionamento abaixo).
Por que especialistas criticam o Casa Verde e Amarela
No Minha Casa Minha Vida, as famílias com renda mensal de até R$ 1,8 mil poderiam ter até 90% do valor do imóvel subsidiado pelo governo. Os financiamentos eram sem juros, com prestações de, no máximo, R$ 270. No novo programa, por outro lado, essa faixa deixa de existir. O principal atrativo do Casa Verde e Amarela são os juros mais baixos, mas o governo não irá mais subsidiar parte do valor do imóvel (veja abaixo, em mais detalhes, como era o Minha Casa Minha Vida e como ficou o Casa Verde e Amarela).
A questão é que, para famílias de tão baixa renda, até mesmo as prestações subsidiadas constituem um problema. Camila D’Ottaviano, professora da FAU-USP e coordenadora do projeto Habitação e Direito à Cidade do Observatório das Metrópoles, explica que existe inadimplência entre essas famílias mesmo com parcelas que correspondem a apenas 10% da renda.
Segundo ela, há dois motivos principais para a inadimplência: primeiro, a falta de condições financeiras, já que muitas famílias perderam a renda por conta da crise econômica; e, segundo, o fato de que muitos empreendimentos foram construídos como condomínios. Na prática, as famílias têm que arcar com a prestação do imóvel e o valor do condomínio, o que acaba se tornando inviável.
“O fato é que dificilmente algum projeto destinado a esse grupo será viabilizado, ao menos nos termos que o programa coloca agora. Os juros são reduzidos, mas não é factível considerando a renda familiar”, diz D’Ottaviano. “Temos que lembrar que o limite dos R$ 2 mil não é individual, é familiar. Muitas vezes são famílias de três, quatro, cinco pessoas que têm que viver com esse valor. Não dá nem mesmo para pagar as despesas de transporte e alimentação”, ressalta a professora.
Outra crítica ao Casa Verde e Amarela é o fim da modalidade Entidades, que existia no Minha Casa Minha Vida. Essa categoria permitia que as famílias se organizassem em cooperativas habitacionais, associações e entidades sem fins lucrativos para ter acesso a moradia.
“Nessa modalidade, havia todo um trabalho de preparação das famílias (...), inclusive de economia doméstica, para que elas pudessem ter condições de pagar o financiamento e o condomínio. Também havia uma capacitação para que os próprios moradores fossem síndicos”, explica D’Ottaviano. “O que acontece no modelo empresarial é que muitas famílias se mudam sem um preparo prévio”, completa.
Déficit habitacional é maior entre famílias mais pobres
Os dados mais recentes da Fundação João Pinheiro, de 2015, apontam que, quanto maior a renda, maior é o percentual de domicílios adequados. Na faixa de famílias que ganham até três salários mínimos, 77,8% das residências são consideradas adequadas. Para os domicílios com renda acima de dez salários mínimos, o percentual sobe para 89,2%.
São considerados inadequados os domicílios com carência de infraestrutura, adensamento excessivo de moradores (mais de três por dormitório), problemas de natureza fundiária, cobertura inadequada, ausência de unidade sanitária domiciliar exclusiva ou em alto grau de depreciação.
Considerando, por exemplo, somente os domicílios urbanos que não têm banheiro de uso exclusivo (191 mil), os dados também apontam para uma concentração nas populações de renda mais baixa. "Não importa a região considerada, a quase totalidade dos domicílios nessas condições abriga famílias cuja renda mensal é menor que cinco salários mínimos", diz o estudo da Fundação João Pinheiro. No caso dos domicílios sem cobertura adequada, a maioria está relacionada a famílias com renda mensal de até três salários mínimos.
Ainda segundo os dados da fundação, o país tem um déficit habitacional de mais de 6,3 milhões de moradias, sendo a maior parte (5,5 milhões) em áreas urbanas. O que mais pesa no déficit é o ônus excessivo com aluguel (que corresponde a 3,1 milhões de unidades). Nessa categoria estão as famílias com renda familiar de até três salários mínimos, que moram em casas ou apartamentos de regiões urbanas e despendem mais de 30% de sua renda com aluguel.
Outro estudo, da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), obtido pelo jornal O Globo, estima que 41,6% do déficit habitacional do país ocorre entre famílias com renda de até um salário mínimo (à época de R$ 1.045).
"Essa população não vai conseguir financiar 30%, 40% do imóvel. Precisa ter alguma solução para esse grupo. Pode ser até aluguel social, mas nada foi apresentado ainda. Mesmo na faixa de R$ 2 mil a R$ 4 mil do Casa Verde e Amarela, vai ser preciso um volume maior de subsídios. Cerca de 90% do déficit estão entre quem ganha até três salários mínimos", disse a economista Ana Maria Castelo, responsável pelo estudo.
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Governo federal enfrenta desafios fiscais
Mesmo diante das críticas, o fato é que o governo federal tem pouco espaço para gastar. O aumento da dívida pública, por conta da pandemia do novo coronavírus, e a lentidão da economia – que pode demandar novos programas de auxílio por parte do governo – são apenas os ingredientes mais recentes de um cenário fiscal já deteriorado.
Para Lucas Dezordi, professor de Economia da Universidade Positivo (UP), era o momento de uma revisão do programa Minha Casa Minha Vida. "Todo programa precisa de ajustes depois de um período", afirma.
Segundo ele, a iniciativa é boa também do ponto de vista econômico, já que é um empurrão adicional à construção civil. "A construção é uma área que tem uso intensivo de mão de obra. É um programa importante para a geração de emprego e renda", conclui Dezordi.
O que diz o Ministério do Desenvolvimento Regional
O Ministério do Desenvolvimento Regional encaminhou a seguinte nota à Gazeta do Povo:
"A Lei 14.118/2021, que institui o Casa Verde e Amarela, abre possibilidades para diversas modalidades de ações voltadas à política habitacional, assim como executar modelos utilizados anteriormente, de forma contínua ou esporádica, de acordo com a disponibilidade de Orçamento Geral da União (OGU).
Os recursos de OGU disponíveis para este ano são suficientes para retomar obras paralisadas e concluir as 266,5 mil unidades contratadas, no âmbito do programa habitacional, que estão em andamento e atendem às famílias de baixa renda. Caso haja suplementação de recursos, novas unidades dentro da modalidade de produção subsidiada poderão ser contratadas.
Além disso, o Casa Verde e Amarela amplia as possibilidades de atendimento às famílias que antes se enquadravam como baixa renda. Nesta fase do Programa, o Grupo 1 (com renda bruta familiar mensal até R$ 2 mil) poderá ser contemplado tanto com a produção habitacional por meio de financiamentos com juros mais baixos, quanto com regularização fundiária e melhoria habitacional".