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Comércio internacional

Como vai funcionar o acordo entre Brasil e China que dispensa o dólar nos negócios entre os dois países

Cédulas de yuan, a moeda chinesa: Lula tentará implementar acordo que não conseguiu no seu segundo mandato (Foto: Pixabay)

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A “desdolarização” da economia global parece ter se tornado a nova empreitada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no cenário internacional. “Toda noite me pergunto por que todos os países estão obrigados a fazer o seu comércio lastreado no dólar. Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda?”, questionou o petista nesta quinta-feira (13).

No fim de março, o governo brasileiro já havia anunciado um acordo entre Brasil e China para transações comerciais sem o uso do dólar americano como intermediário, em câmbio direto entre real e renminbi.

Embora chamada internacionalmente de yuan, renminbi é o nome oficial da moeda chinesa – yuan é o termo utilizado como unidade de contabilização monetária, em uma distinção terminológica que inexiste na maior parte das demais divisas globais.

Em meio à visita de uma comitiva de empresários brasileiros à China, a subsidiária brasileira do Industrial and Commercial Bank of China (ICBC) passou a ser autorizada, no último dia 29, a fazer a compensação direta de renminbi para o real, atuação conhecida como de “clearing house”.

Nesta quarta-feira (12), o ICBC informou ter concluído a primeira transação no Brasil com a moeda chinesa. “Isso demonstrou vantagens significativas em termos de eficiência de compensação, custos de taxa de câmbio e a segurança dos fluxos de fundos e de informação”, declarou a instituição, segundo o jornal China Daily.

À Gazeta do Povo, o professor de relações internacionais do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) Carlo Cauti questionou a viabilidade do acordo. Para ele, não haveria a certeza da manutenção da estabilidade do câmbio da moeda chinesa, “já que ela é manipulado há décadas, desde sempre, pelo governo chinês”, o que tornaria muito difícil convencer exportadores brasileiros a aceitarem o pagamento em yuan.

Lula, no entanto, quer ir além do acordo com a China. “Por que um banco como o [do] Brics não pode ter uma moeda que pode financiar a relação comercial entre Brasil e China, entre Brasil e outros países do Brics?”, disse o presidente nesta quinta, em Xangai, em referência ao grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Em janeiro, durante visita a Buenos Aires, ele já havia sugerido a possibilidade de uma moeda comum para países do Mercosul e mencionou iniciativa semelhante para o Brics. À época, discutia-se a criação de uma unidade de troca comum para transações comerciais e financeiras entre Brasil e Argentina.

“Por que não tentar criar uma moeda comum entre os países do Mercosul? Por que não tentar criar uma moeda comum entre os países do Brics? Eu acho que com o tempo isso vai acontecer e eu acho que é necessário que aconteça porque muitas vezes tem países que têm dificuldade em adquirir o dólar, e você pode fazer acordos, estabelecer um tipo de moeda para o comércio que os bancos centrais”, afirmou Lula na ocasião.

Nesta quinta, questionado por jornalistas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que a defesa da dispensa do dólar em transações internacionais não tem relação com qualquer alinhamento geopolítico do Brasil e disse não acreditar em descontentamento por parte dos Estados Unidos. “Quando você abre uma porta, não está fechando a outra”, disse. “As transações em dólar vão continuar acontecendo; a maioria delas vai acontecer em dólar”, afirmou.

Para ele, no entanto, em casos específicos em que os parceiros comerciais são “muito fortes e tradicionais”, pode-se pensar em mecanismos “mais condizentes” com a situação. “Nosso comércio com a China hoje é estrondoso e só cresce, ano a ano.”

Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil e uma das principais origens de investimento no país. Segundo números da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), em 2022, o volume de transações foi recorde, atingindo US$ 150 bilhões, sendo US$ 89,7 bilhões em exportações brasileiras e US$ 60,7 bilhões em importações.

Acordo com China pode deixar Brasil menos exposto a crises provocadas por conflitos internacionais

Já Marcelo Cursino, gerente de estratégia comercial do Braza Bank, vê a iniciativa como positiva. Ele destaca que, embora o dólar seja a moeda mais utilizada em transações internacionais, países que não emitem a moeda estão expostos a diversos problemas.

“Dentre elas, a falta de controle na política monetária, que acaba guiada pelo emissor, inflação indireta e até algumas sanções econômicas, conforme política externa do emissor e a rastreabilidade do fluxo financeiro entre bancos e países por meio dos sistemas financeiros”, exemplifica.

“Temos visto cada vez mais sanções dos Estados Unidos junto a países com os quais possuem algum atrito, seja econômico, militar ou social”, diz. “Quando essas sanções ocorrem, os demais países se veem pressionados e tendem a reduzir suas negociações com os países sob sanção, visto o receio de também sofrerem com restrições”.

No ano passado, uma das sanções impostas à Rússia por países europeus e pelos Estados Unidos em razão da Guerra da Ucrânia foi desconectar os bancos russos do sistema de pagamentos Swift, uma plataforma de remessa de pagamentos que conecta 11 mil instituições financeiras de mais de 200 países.

Uma das consequências foi o estreitamento das relações entre Rússia e China, por meio da utilização do Cross-Border Interbank Payment System (Cips), sistema chinês alternativo ao Swift do qual já fazem parte 25 países.

O Cips foi criado pela China em outubro de 2015 como uma forma de mitigar riscos financeiros e econômicos associados à moeda norte-americana, além de fortalecer o renminbi. O sistema permite que as transações financeiras ocorram entre a China e outros países por meio de suas moedas próprias.

Operações pela plataforma de transações financeiras chinesa devem começar no segundo semestre

No último dia 29, ainda durante a visita da comitiva brasileira à China, o sino-brasileiro Bank of Communications BBM (Bocom BBM) tornou-se a primeira instituição financeira da América Latina a ser membro pleno do Cips.

O Bocom BBM é resultado da aquisição, pelo Bank of Communications, um dos cinco maiores bancos comerciais da China, do BBM, um dos mais antigos grupos financeiros do Brasil, fundado em Salvador em 1885.

“Assinamos o acordo para ser membro. O sistema vai estar plenamente operacional na segunda metade do ano. Nossa meta é que seja algo ao redor de julho”, disse à Reuters Alexandre Lowenkron, presidente-executivo do Bocom BBM.

Para a instituição, o acordo permitirá uma redução dos custos de transação direta entre renminbi e real e uma maior oferta de operações de proteção (hedge) de variação cambial entre as moedas.

A adesão do Brasil ao Cips teve início em 31 de janeiro de 2023, com a assinatura de um memorando de entendimentos entre os bancos centrais brasileiro e chinês. Conforme o documento, caberia à autoridade monetária do país asiático a prerrogativa de eleger uma instituição autorizada para atuar como “offshore clearing bank” no Brasil.

Em nota divulgada no início do mês, o BC destacou, entre os benefícios da entrada do Brasil no Cips, “aumento da liquidez local de RMB; manutenção de reservas cambiais em moeda forte no País; redução de intermediários nos pagamentos internacionais; e aproximação do sistema de pagamentos local ao chinês, com aumento da eficiência operacional em termos de redução de custo e tempo.”

Ainda segundo o órgão, as operações, dentro desse novo modelo, estão asseguradas a subordinação à nova lei cambial, às regulações infralegais pertinentes, às normas jurídicas referentes à autorização, à regulação, à supervisão e aos sancionamentos de eventuais modelos de negócio a serem desenvolvidos ou incrementados após a celebração do memorando de entendimentos.

“Para o Brasil, vejo como positiva a criação desse canal de pagamentos alternativo, visto que favorece o estreitamento de relações econômicas com um parceiro muito importante para a balança comercial brasileira; reduz a dependência do dólar e, consequentemente, dos movimentos correlacionados com a moeda, como inflação, crises e outros, além de diminuir custos e tempo no processamento de operações”, diz Cursino, do Braza Bank.

Brasil já integra sistema de pagamentos em moeda local com países do Mercosul

O Brasil já integra convênios para realização de transações em moedas alternativas ao dólar. Um deles é o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), estabelecido entre os bancos centrais brasileiro, argentino, uruguaio e paraguaio.

Nesse sistema, importadores dos países signatários contratam instituições financeiras para transferir em moeda local o valor equivalente ao preço do produto que desejam importar na moeda do exportador.

A instituição contratada, por sua vez, transfere ao banco central de seu país o equivalente em moeda nacional para o pagamento da operação na moeda do exportador, a uma taxa de câmbio fixada entre as duas moedas.

“As transações em moeda local já aconteciam. Mas o Mercosul se desestruturou, em parte por falta de liderança do Brasil nos últimos anos, em parte pela dificuldade de economias importantes, como é o caso da economia argentina”, disse Haddad nesta quinta. “Com a dinamização dos bancos multilaterais dos Brics, isso pode ser facilitado.”

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