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Os temores de um “El Niño”, fenômeno climático resultante do aquecimento das águas do Pacífico Central, mais forte e o fim do acordo para o escoamento da safra ucraniana de grãos pelo Mar Negro, não devem ter maiores impactos sobre o preço dos alimentos no Brasil neste ano.
O coordenador de índices de preços do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), André Braz, aponta que uma inflação de alimentos mais comportada já está “contratada” para este ano.
A expectativa é de uma pequena alta no preço da comida em 2023: 0,7% frente a 2022, de acordo com a XP Investimentos. Nos 12 meses encerrados em junho, segundo o IPCA, os preços da alimentação no domicílio acumulam uma alta de 2,24%, a menor desde o início da série histórica do IBGE iniciada em dezembro de 2020.
Segundo ele, apesar de, na Bolsa de Chicago, os preços do trigo e do milho estarem registrando volatilidade por causa do rompimento do acordo, há ainda muitas “gorduras” a serem queimadas. As cotações internacionais estão 30% abaixo do que há um ano.
Outros fatores que ajudam são a supersafra em 2022/3 e a demanda mundial menos aquecida. Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) sinalizam para uma colheita de 317,6 milhões de toneladas no período, 16,5% acima da registrada no ciclo anterior. É a maior já produzida no país, destaca o órgão.
A demanda internacional está mais contida por causa da manutenção da inflação mundial em patamares elevados. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta 6,8% para este ano. Bancos Centrais de regiões como União Europeia, Estados Unidos e Reino Unido estão esfriando a demanda por meio de uma política monetária mais restritiva.
“A economia global dá sinais de fragilidade e limita o espaço para aumentos de preços mais robustos obtidos com a exportação”, destaca a consultoria agro do Itaú BBA em relatório.
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Questões pontuais podem afetar preço dos alimentos neste ano
Há questões pontuais que podem afetar o preço dos alimentos ainda neste ano, ressalta Braz, do FGV Ibre. Uma delas é se houver uma intensificação de casos de gripe aviária no país, atingindo as criações em escala comercial. Até agora, tem sido registrados casos esporádicos em criações para subsistência ou na natureza.
Outra é se a falta de chuvas em regiões produtoras de carne bovina ganhar mais força. “Isto pode deixar as pastagens mais secas, obrigando o produtor a gastar mais com ração”, afirma Braz.
Alterações no regime de chuvas também impactam a inflação de alimentos. "Com aumento de chuvas no último trimestre do ano, preços de produtos como frutas, tubérculos e hortaliças tendem a ficar mais pressionados, com impacto temporário sobre a inflação", destaca relatório do Itaú.
Diante desse cenário e das projeções da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês), a inflação pode ter uma alta de 0,1 ponto percentual em 2023.
Mercado paga para ver o que acontece com a Guerra na Ucrânia
O fim do acordo intermediado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o escoamento da safra ucraniana pelo Mar Negro não deve ter maiores impactos sobre as cotações dos cereais, destacam analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
A expectativa é de que não sejam atingidos os preços históricos registrados no ano passado. “O efeito sobre as cotações deve ser limitado e não deve causar maiores pressões sobre a oferta global”, destaca Francisco Queiroz, analista de grãos do Itaú BBA. Quem pode sentir mais são os países do Oriente Médio e da África, que são mais dependentes dos cereais ucranianos.
“O mercado está pagando para ver o que acontece no Leste Europeu. Está difícil prever o que vai acontecer”, diz o gerente de relacionamento da hEDGEpoint Global Markets, Andrey Cirolini.
Ele lembra que a Ucrânia, importante produtor de trigo e milho, está conseguindo escoar parte da produção via fluvial ou terrestre. Mas a Rússia tem atacado terminais portuários ucranianos e instalações utilizadas para a estocagem de alimentos.
Já os russos estão conseguindo escoar sua produção para países aliados. E tiveram uma safra recorde de grãos. Estimativas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês) apontam para uma colheita de 92 milhões de toneladas de trigo, 22,46% a mais do que na anterior. Os estoques devem crescer 37%.
Impactos maiores do El Niño só em 2024
Braz aponta que o El Niño deve preocupar mais para 2024, já que pode diminuir o volume de chuvas em importantes regiões produtoras, como o Matopiba – região formada por áreas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
A expectativa da economista Priscila Trigo, do Bradesco, é de um El Niño com intensidade fraca a moderada. “Podemos esperar boa produção de grãos de forma geral, com aumento da safra americana, em desenvolvimento, e na América do Sul, que será plantada agora no segundo semestre”.
As perspectivas do Itaú são de uma intensidade moderada a forte, mas ainda inferior ao observado em 2015-6. "Esperamos que o fenômeno atual tenha impacto limitado para a safra brasileira", destacam as analistas Júlia Passabom, Natália Cotarelli e Luciana Ribeiro.
A projeção do banco é de uma desaceleração do PIB agro para 2,5% em 2024, após forte alta próxima a 12% esse ano, diante de um leve aumento da produção de soja e queda da próxima safra de milho.
Se a anomalia climática ganhar muita força, o cenário fica muito mais incerto. Para o Itaú, um "El Niño" de intensidade similar à ocorrida em 2015-16 teria um impacto negativo de 0,3% a 1,3% no PIB do campo.
Para o Bradesco, prevalecendo esse cenário, a situação tende a ser pior. “Replicando o que aconteceu no último evento forte, em 2015-6, a queda na safra de grãos pode chegar a 10%, levando à redução de 3,75% do PIB da agropecuária”, destaca Trigo.
O impacto, com quebra relevante da safra, poderia ser uma inflação de alimentos no domicílio entre 8% e 9%, com destaque para cereais e alimentos industrializados, aponta o Bradesco.
O USDA projeta um crescimento de 4,4% na próxima safra mundial de grãos (soja, milho, trigo e arroz). Os maiores problemas ficariam na produção de trigo e arroz na Ásia, açúcar na Índia e café no Vietnã e Colômbia. Algodão também enfrentaria uma situação adversa na Austrália e na Ásia.
Se a intensidade da anomalia climática mudar para forte, o efeito pode ser diferente. Foi o que se observou nas últimas duas vezes que ocorreu nessa magnitude: em 1997-8 e 2015-6. Segundo Trigo, no primeiro período a produção global de grãos cresceu 2,6% e a de açúcar, 0,9%. Os preços dos alimentos no mundo recuaram, em média, 8,7%, puxado por cereais e açúcares.
Já o cenário no segundo período foi diferente, a produção global de grãos caiu 1,8% com quebras na produção brasileira, argentina e asiática. A safra de açúcar foi 7,1% menor do que a anterior. A inflação de alimentos subiu 9,2%, puxada por grãos e açúcares. Trigo, do Bradesco, destaca que os efeitos são incertos.
Nova supersafra não é descartada
Cerolini, da hEDGEpoint Global Markets, não descarta a possibilidade de um novo recorde na safra de grãos. A produção no Rio Grande do Sul pode compensar eventuais problemas com um cenário neutro a mais seco no Centro-oeste.
“As estiagens causadas pelo La Niña derrubaram a produção agrícola gaúcha. Uma safra normal de grãos no estado seria de 21 a 22 milhões de toneladas. Este ano foram colhidas entre 13 e 14 milhões”, diz.
Queiroz, do Itaú BBA, tem uma avaliação favorável sobre as perspectivas para a próxima safra de soja. A expectativa é de um crescimento menor da área plantada, estimado em 1%. Ganhos de produção viriam com um incremento na produtividade. O USDA estima um crescimento de 4% na colheita, que chegaria a 163 milhões de toneladas.
Já para o milho, a expectativa é de uma queda de 3% na produção nacional. O cenário atual de preços mais baixos e margens comprimidas deve influenciar a decisão do agricultor brasileiro para a safra 2023/4. “A perspectiva é de que o produtor reduza o pacote tecnológico e deixe de cultivar áreas marginais”, diz Queiroz.
Do lado externo, deve haver maior disponibilidade de milho na próxima colheita, já que, segundo o Departamento de Agricultura americano, deve aumentar a produção em dois – EUA e Argentina - dos três maiores exportadores mundiais. “Isto sugere maior disponibilidade para a exportação do cereal”, destaca relatório do Itaú BBA. As exportações brasileiras para a China tendem a continuar firmes.