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Transição energética

Energia da biomassa já salvou país do apagão e tem potencial oito vezes maior

Principal biomassa na geração de energia do país hoje, o bagaço de cana ainda é majoritariamente usado para abastecimento da necessidade energética das próprias usinas. (Foto: Divulgação / Udop)

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Na gíria, dizer que alguém ou alguma coisa está “no bagaço” é sinônimo de esgotamento das energias. Mas, na realidade das usinas de cana-de-açúcar e na diversificação da matriz energética brasileira, o bagaço é um ativo valioso que já salvou o subsistema elétrico Sudeste/Centro-Oeste do colapso na crise hídrica mais grave em quase cem anos. E tem um potencial ainda maior.

Em 2021, a energia lançada no sistema elétrico brasileiro produzida com bagaço de cana-de-açúcar e outras biomassas (licor negro de celulose, cavaco de madeira e biogás, principalmente) possibilitou uma poupança de 14 pontos percentuais nos níveis de água dos reservatórios do subsistema Sudeste/Centro-Oeste.

Sem esse socorro, a capacidade dos lagos ficaria reduzida de 18% para 4%, o que, na prática, inviabilizaria a operação das hidrelétricas, elevando os riscos de apagão. Hoje o bagaço da cana representa 60,5% de toda a cogeração – produção de duas ou mais formas de energia a partir de um combustível – existente no país.

Essa história ainda pouco conhecida provou, segundo Newton Duarte, presidente da Associação da Indústria de Cogeração de Energia (Cogen), o papel estratégico indispensável da biomassa na segurança do sistema elétrico brasileiro.

A maior oferta de bagaço ocorre na safra da cana de açúcar do Centro-Sul, entre abril e outubro, que coincide justamente com o período seco e crítico para a geração das hidrelétricas. “A biomassa pode ser o elemento que ajuda a guardar a água nos reservatórios. O ideal seria usar a biomassa de forma a sempre manter dois terços dos reservatórios guardados. Porque os períodos de seca vêm, inexoravelmente”, aponta.

Biomassa pode contribuir oito vezes mais

Em pouco mais de uma década e meia, o Brasil triplicou o volume de energia elétrica a partir de biomassa da cana lançada no Sistema Interligado Nacional (SIN). Atualmente, são 17 gigawatts (GW) em operação comercial, o que representa 8,8% da capacidade instalada da matriz elétrica do país (de 194 GW).

O potencial inexplorado, no entanto, pode ser oito vezes maior. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério das Minas e Energia, o potencial técnico de geração de bioeletricidade para a rede é de 143 GW, enquanto o efetivamente lançado no sistema, em 2022, foi de 18,4 GW. Isso sem contar o efeito multiplicador que pode ter o chamado retrofit (modernização) das operações nas usinas e o aproveitamento da palha e do biogás.

Atualmente, a maior parte da energia gerada a partir da queima de matéria orgânica renovável ainda é destinada para o autoconsumo das indústrias, representando 51% do total gerado.

O excedente vendido no sistema elétrico nacional, acima da garantia física declarada das usinas, é remunerado pelo Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), que estaria muito baixo devido ao bom nível dos reservatórios das hidrelétricas, desestimulando a oferta no mercado de curto prazo. "É uma regra improducente porque obriga que as usinas mais eficientes tenham que liquidar esse excedente pelo PLD, ou vender nos leilões regulados. Ou seja, quando da venda pelo PLD as usinas vêm recebendo somente parte dos valores da energia gerada junto ao Mercado de Curto Prazo em face da elevada judicialização do setor. Poderiam, no entanto, vender no mercado livre de energia, o que já acontece com cerca de 70% da bioeletricidade exportada. Estamos há mais de quatro anos sugerindo uma alteração. Nosso objetivo é estimular que as usinas sejam ainda mais eficientes para que o País possa contar com uma energia renovável e distribuída", diz Duarte, da Cogen.

Plano Decenal de Energia está desatualizado, reclama Cogen

Apesar do crescimento expressivo em poucos anos, o setor de biomassa reclama de equívocos no planejamento estratégico do governo federal. Elaborado em 2022, o Plano Decenal de Energia 2031 da EPE projeta crescimento do segmento entre 80 MW e 400 MW, ao máximo, por ano. Como referência, 1 MW é suficiente para abastecer 1,3 mil residências.

"Essa é uma estimativa desalinhada. Só no ano passado houve o acréscimo de cerca de 900 MW adicionais de biomassas produzidas preponderantemente a partir do licor negro. A própria Aneel já tem outorgado 2,4 mil MW até 2026. Nos últimos cinco anos, a despeito dos problemas econômicos e da pandemia, a indústria de cogeração brasileira já entregou adicionalmente 350 MW por ano. Então, entendemos que essa perspectiva de 80 MW por ano, estimada pela EPE, precisaria ser ajustada para patamares mais coerentes com o potencial real de crescimento do setor”, afirma Duarte.

E qual o efeito dessas projeções oficiais excessivamente modestas? “Imagine que eu seja uma multinacional e que queira investir no Brasil numa nova fábrica de turbinas, de caldeiras ou de conversores de velocidade. Mas, ao examinar um documento oficial de um órgão governamental com uma estimativa muito abaixo da necessidade para a implantação de uma nova planta, a tendência é que ela prefira ser mais cautelosa. Porque o próprio Plano de Expansão de Energia 2031 antevê somente 80 MW por ano, a partir de 2026, e essa projeção é insuficiente para incentivar decisões de investimentos”, acrescenta o executivo da Cogen.

Newton Duarte é presidente da Cogen (Associação da Indústria de Cogeração de Energia) (Foto: Divulgação / Cogen)

Aproveitamento de audiência pública é questionado

“Grande parte da minha experiência profissional foi em multinacionais. De um modo geral, todos os investidores externos sempre observam as projeções oficiais. E essas projeções precisam refletir as perspectivas reais de mercado, de modo a atrair investimentos para o País", sublinha. Segundo Duarte, das centenas de sugestões feitas em audiência pública para o Plano Decenal de Energia 2031, a EPE não teria incorporado qualquer alteração significativa.

O parque de geração de energia a partir da biomassa já está instalado no país há 40 anos, principalmente na região sucroenergética do Centro-Sul. Em 2010, com aumento na demanda de etanol pós crise financeira internacional, o setor agregou oferta de 1.750 MW em um único ano.

“Realmente, ter previsão de crescimento de 80 MW ou 200 MW, significa que você não está com olhar estratégico para essa fonte. É preciso repensar a política pública. Potencial adormecido a gente tem, mas só aproveitamos 13%”, diz Zilmar José de Souza, gerente de Bioeletricidade da União da Indústria da Cana-de-Acúcar e Bioenergia do Brasil (Unica).

EPE diz que considerou sugestões na versão final do plano

Em resposta às críticas, a EPE enviou nota à Gazeta do Povo afirmando que mantém frequentes reuniões e interações com o mercado bioenergético, e que "distintas informações avaliadas e utilizadas pela EPE, inclusive as que se refere a custos de implantação e operação de usinas de bioeletricidade, têm como origem principal os próprios empreendedores e são diretamente informadas por eles durante o processo de habilitação técnica de leilões de energia elétrica".

A empresa negou que nenhuma sugestão tenha sido recebida no plano decenal, e assegurou ter analisado mais de 500 contribuições enviadas por mais de 50 instituições, "muitas das quais foram consideradas para aprimoramentos incorporados na versão final do plano".

No mercado regulado de energia elétrica – que tem os preços estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – o setor sucroenergético reclama ainda da falta de remuneração diferenciada para fontes energéticas renováveis, que emitem menos poluentes e têm capacidade de fornecimento contínuo.

Cana-de-açúcar é a maior fonte de biomassa do país (Foto: Divulgação / Unifesp)

No ano passado, o governo retirou da legislação o subsídio que era dado às energias eólica, fotovoltaica, de biomassa e de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Essas fontes pagavam apenas 50% da chamada “tarifa do fio” que cobre custos da transmissão e distribuição da energia.

“Tiraram da lei com a promessa de, no futuro, restaurar a remuneração pelo atributo ambiental dessas fontes. Mas esse processo ainda está parado”, aponta Souza. Antes de findar o benefício, contudo, houve uma corrida para aprovação de projetos, o que acabou criando um estoque de outorgas que trazem embutido o subsídio.

Ter ou não subsídio, eis a questão

Por algum tempo, no processo de transição energética, incentivar as fontes renováveis ainda será necessário, segundo o gerente de Bioeletricidade da Unica.

“Às vezes, é uma questão de no leilão ter uma cota para compra de biomassa, de energia de PCH, por exemplo. No mercado mexicano, se paga US$ 10 extras como atributo ambiental. Existem ‘n’ formas. É preciso colocar os estudos no papel e transformar num mercado de carbono, que represente valoração do atributo ambiental no setor elétrico”, completa Souza.

Na avaliação de Claudio Ribeiro, presidente da 2W Ecobank, uma das maiores operadoras do mercado livre de energia, já passou o tempo em que as fontes eólica, solar e de biomassa eram caras e precisavam de subsídios para ser competitivas.

Atualmente, o próprio mercado pede energia com estes selos sustentáveis. “Essas energias já são competitivas por duas razões: porque houve uma evolução tecnológica da geração renovável e porque os consumidores cada vez mais estão indo para essas fontes, não querem comprar de fonte convencional, porque eles têm metas de obtenção de ‘net zero’. As pessoas estão utilizando cada vez mais a eletrificação, e será preciso voltar a investir em geração. Não tem mais como expandir a geração das grandes hidrelétricas, será pelas renováveis”, afirma Ribeiro.

Dos novos investimentos em geração de energia, atualmente, 80% já são em fontes renováveis. A própria 2W está investindo R$ 2 bilhões na construção de duas usinas eólicas, de 139 MW no Rio Grande do Norte, e de 261 MW no Ceará, que devem entrar em operação em janeiro e abril do ano que vem. A meta da companhia é chegar em 2027 oferecendo no mercado 2 GW, o suficiente para atender 3 milhões de residências.

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