Ouça este conteúdo
O pedido do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Supremo Tribunal Federal (STF) para mudar as regras para pagamento de precatórios pode resolver a “bola de neve” de dívidas da União que poderia levar a uma paralisia da máquina pública nos próximos anos. A manobra, no entanto, divide especialistas, entre os quais há quem a considere um tipo de contabilidade criativa ou “pedalada” nas contas públicas.
Por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério da Fazenda pediu na segunda-feira (25) que o STF derrube regras criadas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o pagamento das dívidas reconhecidas pela Justiça até 2027.
Proposta pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, a Emenda Constitucional (EC) 114/2021 permitiu à União pagar apenas parte dos precatórios com vencimento nos cinco anos seguintes, de 2022 a 2026, além de mudar a metodologia para cálculo da correção do teto de gastos. A medida foi apelidada de PEC do Calote por críticos e oposicionistas.
Com as novas regras, a União deixou de pagar R$ 43,8 bilhões dos R$ 89,1 bilhões originalmente comprometidos para precatórios em 2022, além de ganhar um espaço adicional de mais R$ 62,2 bilhões com a atualização da regra do teto. A manobra permitiu ao governo Bolsonaro aumentar o valor médio da parcela do Auxílio Brasil (atual Bolsa Família) em seu último ano de mandato, quando disputaria a reeleição.
Agora, a Fazenda quer que a Corte reconheça uma nova classificação para as despesas. O pedido é para separar as dívidas em duas partes. O valor principal continuaria classificado como despesa primária. Juros e correções monetárias, por sua vez, passariam a ser tratados como despesa financeira, sem impacto no resultado primário.
Além disso, o governo pede autorização para quitar o estoque de R$ 95 bilhões em precatórios represados até agora. O pagamento seria feito por meio de crédito extraordinário, que também fica fora do limite orçamentário – ou seja, não teria efeito sobre o resultado primário, mas elevaria a dívida pública.
Em julho, no Relatório de Projeções Fiscais do primeiro semestre, o Tesouro Nacional alertou para o risco de uma bomba fiscal de até R$ 199,9 bilhões a ser paga em 2027 em razão do adiamento das dívidas. No documento, o órgão chegou a sugerir que os precatórios fossem excluídos do novo arcabouço fiscal.
Estudos da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculado ao Senado, indicam que o rombo poderia ser ainda maior. Nos cálculos da IFI, o efeito “bola de neve” levaria as dívidas a chegarem a um patamar entre R$ 121,8 bilhões a até R$ 744,1 bilhões ao fim de 2026.
No início de agosto, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o governo solucionaria o gasto com os precatórios até o fim do mandato. “A área econômica vai se debruçar sobre esse tema e buscar soluções para ela. É uma herança ruim do governo anterior. É a primeira vez na história, que eu tenha lembrança, que a União deixa de honrar seus compromissos”, disse.
A ideia inicial, no entanto, era que a classificação de parte dos precatórios como despesa financeira fosse incluída no texto de uma PEC. O pedido de ajuda ao STF, que já é alvo de críticas por interferir na esfera do Legislativo, também pode ser considerado inadequado em termos de foro.
“Não é função do STF entrar nessas questões de classificação de gasto. As normas de contabilidade do Banco Central não autorizam essa interpretação e nem as normas do FMI [Fundo Monetário Internacional]. É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo”, disse o economista e ex-ministro da Fazenda do governo de José Sarney (MDB) Maílson da Nóbrega ao jornal “O Estado de S. Paulo”.
Desde o início do atual mandato, o presidente Lula tem contado com decisões favoráveis do Judiciário para o reforço do caixa do Tesouro. No primeiro semestre de 2023, a União saiu vitoriosa em dez de 14 julgamentos tributários realizados no STF e no STJ, acumulando um potencial de arrecadação adicional de mais de R$ 200 bilhões.
A nova iniciativa do governo junto ao STF não chegaria a interferir no Orçamento de 2024, uma vez que os pagamentos de precatórios previstos para o próximo ano, calculados em R$ 66,4 bilhões, não serão mexidos ainda que os ministros do Supremo concordem com a nova interpretação. A medida visa um alívio fiscal no longo prazo, liquidando antecipadamente a fatura que chegaria em 2027.
“O que vai acontecer se o STF aprovar? Em 2024, paga os mesmos R$ 66,4 bilhões. Em 2025, a gente tem de encaixar tudo no arcabouço”, explicou o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron.
“Nas nossas previsões, mesmo com a segregação de juros, classificando como despesa financeira, deve ter uma pressão de gastos de R$ 2 bilhões, R$ 3 bilhões a mais. Então, é o contrário: estou colocando um pouquinho mais de carga no fiscal em 2025 e 2026 em relação a não fazer nada”, disse.
Segregação da despesa com precatórios gera controvérsia entre especialistas
A proposta, no entanto, divide a opinião de economistas.
“Os precatórios, a saber, são corrigidos pela Selic. A propositura do Tesouro e da PGFN [Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional], conforme consta, é que se separe o que é pagamento de principal mais juros de mora [inflação] do que é pagamento de juros. A primeira parte, gasto primário, A segunda, despesa financeira. Está certo o Tesouro”, diz Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena.
Salto acredita que Supremo acatará a tese, o que, para ele, conferiria previsibilidade aos precatoristas, ao mercado, à sociedade e ao próprio governo. “É uma resposta retumbante à PEC dos Precatórios, que foi uma pedalada constitucionalizada. Resolve-se o nó górdio trazido pela PEC dos Precatórios”, diz.
Por outro lado, há quem considere a proposta uma espécie de contabilidade criativa, ou seja, uma tentativa de maquiar o resultado primário dos próximos anos ao desconsiderar despesas que originalmente contariam para a meta fiscal.
VEJA TAMBÉM:
“Eu acho louvável o governo tentar resolver e pagar os precatórios postergados. Isso é positivo”, disse Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) à “Folha de S.Paulo”. “Mas eu tenho dificuldade de entender os juros do precatório como uma despesa financeira porque decorre de uma despesa primária. Não há operação de crédito nisso”, completou.
Para Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e especialista em contas públicas, não há princípio legal ou de práticas contábeis que justifique a medida. “Se receber chancela jurídica, pode ter efeito sobre despesas primárias de juros muito além das despesas com precatórios”, declarou, à mesma publicação.
“E pior, o argumento de que precatório atrasado é dívida e, portanto, despesa financeira, passa a constituir incentivo para que, no futuro, se atrase o pagamento de precatórios, apenas para pagá-los como despesa financeira”, disse.
Entre quem apoia a ação, o pesquisador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), José Roberto Afonso, afirma que não há maquiagem nas contas. Segundo ele, a “pedalada” feita no governo Bolsonaro sai mais cara do que simplesmente o Tesouro emitir um papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório.
“Não existe maquiagem. Se há, é na situação atual, porque há uma dívida pública, líquida e certa, inclusive porque a Justiça já garantiu que é devido. Essa dívida está contabilizada nos balanços dos governos, sempre esteve. Se fosse uma empresa, estaria no passivo”, disse Afonso ao jornal “O Estado de S. Paulo”.
VEJA TAMBÉM: