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Empréstimo

Governo quer baratear crédito com consignado privado, mas proposta pode ter armadilhas

Governo quer baratear crédito com consignado privado, mas proposta pode ter armadilhas
Governo Lula prepara projeto de crédito consignado para trabalhadores formais do setor privado. Ideia é baratear empréstimos, mas modalidade pode ter armadilhas para o trabalhador. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

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O governo recentemente anunciou suas prioridades econômicas e, entre elas, está o lançamento de uma linha de crédito consignado para trabalhadores formais do setor privado, incluindo aqueles cujas empresas não tenham convênio com bancos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse na semana passada que o projeto está "muito adiantado" nas tramitações internas do Executivo e pode ser enviado ao Congresso antes do carnaval.

O governo ainda não deu detalhes sobre a proposta, mas nutre a expectativa de que ela ajude a baratear o crédito, uma vez que o risco para o banco que empresta o dinheiro tende a ser menor que em outras modalidades.

Porém, a iniciativa levanta questionamentos em relação a um possível aumento no endividamento dos trabalhadores e ao uso do FGTS como garantia para os empréstimos, além de reclamações sobre privilégios a grandes bancos tradicionais em detrimento das fintechs para o desenho do programa.

De acordo com Izak Carlos da Silva, economista-chefe do BDMG e especialista do Instituto Millenium, um dos principais riscos da medida é que, em um momento de alto endividamento, o trabalhador acabe se complicando ainda mais.

Um setor que também manifesta sua cautela em relação à medida em estudo é o da construção civil. Renato Correia, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), afirma que é a favor do consignado para o trabalhador do setor privado, desde que seja extinto o saque-aniversário do FGTS. Isso porque o Fundo de Garantia é amplamente utilizado para o financiamento de imóveis, e o saque-aniversário diminui o recurso disponível para a habitação.  

“Manter os dois sistemas prejudica ainda mais a produção de imóveis de interesse social”, afirma Correia. Caso ambas as linhas existam simultaneamente – o consignado privado e o saque-aniversário –, ele entende que "a situação de saques emergenciais" seria agravada, já que os bancos passariam a ter preferência sobre a poupança obrigatória do trabalhador.

Embora o governo ainda não tenha divulgado os parâmetros gerais das novas linhas de crédito consignado, o uso ou não do FGTS como garantia e o estabelecimento de um teto de juros para esse tipo de consignado são pontos que também têm gerado discussões.

Até o momento, o governo apenas disse que pretende disponibilizar as informações do eSocial para que as instituições bancárias possam oferecer crédito a trabalhadores CLT e a empregados domésticos registrados na plataforma. O eSocial é um sistema que reúne informações trabalhistas, previdenciárias, fiscais e tributárias das empresas e seus empregados.

Ampliação do crédito e outras medidas podem manter inflação e juros em alta

Além do novo modelo de crédito, outra medida anunciada pelo governo e que busca expandir o consumo é a isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil. Ambas fazem parte das 25 prioridades econômicas apresentadas por Haddad ao novo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).

No entanto, essas medidas, apesar de acarretarem a expansão do poder de compra da população, podem manter em alta a inflação e os juros. O aumento na demanda causado pela maior disponibilidade de dinheiro – seja pelo crédito, seja pela isenção do IR – pode levar a novos aumentos de preços e forçar o Banco Central a apertar ainda mais a política monetária.

Izak Silva afirma que a proposta do governo vem em um momento no qual as famílias estão endividadas ou se endividando. Ele avalia que as pessoas são livres para tomar crédito ou não, mas que nem todas têm a consciência do quão “deletério” isso pode ser, principalmente em um cenário desfavorável.

“É uma modalidade importante, mas ela precisa ser amplamente divulgada, as pessoas precisam ter consciência financeira do que está acontecendo, e por que essa medida vai ser lançada agora e não em outro momento”, pondera.

Em dezembro de 2024, de acordo com o mapa do endividamento do Serasa Experian, 73,5 milhões de pessoas no país que estavam em situação de inadimplência. O total de inadimplentes teve um aumento de quase 10 milhões de pessoas desde dezembro de 2021, quando o número era de 64 milhões. No fim de 2022, passou para 69,4 milhões, chegando a 71,1 milhões um ano depois.

Lula vê expansão do crédito como moeda eleitoral

O anúncio do novo modelo de crédito consignado foi feito pelo ministro da fazenda, Fernando Haddad, no dia 29 de janeiro, após uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva; o ministro do Trabalho, Luiz Marinho; o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa; e representantes de grandes bancos.

Na ocasião, Haddad ainda afirmou que a nova linha garantirá crédito barato para cerca de 42 milhões de brasileiros e que a proposta deve ser encaminhada para o Congresso Nacional por meio de uma medida provisória.

O encontro para tratar do novo modelo de crédito consignado ocorreu no mesmo dia em que o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a taxa Selic em mais um ponto percentual, para 13,25%.

A escassez de crédito e de liquidez devido à alta dos juros é uma preocupação para Lula. Como o presidente havia deixado claro para sua equipe ministerial em reunião no início do ano, a avaliação do governo é de que a campanha de 2026 já teve seu pontapé inicial. De olho nas urnas, uma das apostas para a reeleição de Lula é a expansão do crédito e do consumo.

No início de fevereiro, Lula também ressaltou benefícios do crédito durante um evento na Bahia, quando reafirmou que iria anunciar alguns programas “surpresa” nos dias seguintes, porque queria “mais crédito para o povo”.

“Vamos fazer muitas políticas de crédito nesse país, porque a hora que o dinheiro começar a circular nas mãos das pessoas, ninguém aqui vai comprar dólar. Ninguém vai depositar no exterior. Vocês vão comprar comida, roupa, material escolar e vão melhorar a vida da cidade de vocês”, disse Lula.

Bancos são favoráveis a novas linhas de consignado privado

Até o momento, os bancos têm se mostrado favoráveis ao novo modelo de concessão de crédito. No entanto, o setor tem discutido alguns critérios com o governo. Dentre eles, o não estabelecimento de um teto para os juros do consignado e, caso o governo opte por essa medida, a garantia do FGTS.

A condição integra um documento entregue pela Febraban – federação que representa os bancos – ao governo, segundo reportado pelo jornal o Estado de S. Paulo. O argumento da entidade é que, caso haja limite para os juros, seria necessário contar com a garantia do FGTS.

Segundo Izak Silva, ao colocar o FGTS e não apenas o contrato de trabalho como garantia do consignado privado, o modelo deixa de ser de crédito clean, como os empréstimos para pessoas físicas atuais, e entra nas categorias com garantia, com juros mais baixos, como os consignados para funcionários públicos, por exemplo.

A Febraban ainda defende que, mesmo com a garantia do FGTS, o saque-aniversário deve ser mantido. Nessa modalidade de crédito, os bancos adiantam parcelas do Fundo de Garantia para os trabalhadores, alguns em até dez anos.

Teto de juros no consignado do INSS levou a disputa entre governo e bancos

Outro ponto que tem gerado discussões é o estabelecimento de um teto para os juros do consignado privado. Não seria a primeira vez que o governo tenta conter essas taxas na marra.

Em março de 2023, o Conselho Nacional da Previdência Social (CNPS) determinou uma redução nos juros do consignado para beneficiários do INSS de 2,14% para 1,70% ao mês. Como resposta, tanto bancos privados, quanto públicos começaram a rever suas ofertas para aposentados e pensionistas, sob o argumento de que os juros estabelecidos no teto não garantiam a rentabilidade dessas operações.

Izak Silva defende que seria ruim se o governo buscasse estabelecer um limite de juros para o consignado privado. Intervenção do governo na economia em geral é ruim e gera distorções no mercado, diz o economista.

Por outro lado, Humberto Aillón, diretor de finanças e especialista da Fipecafi, avalia que seria importante o governo estabelecer um limite para os juros. Mesmo com algumas garantias como a renda do CLT e o limite máximo de crédito vinculado à renda líquida, os juros cobrados podem ser altos, diz.

Mas ele adverte que, se o teto de juros não for compatível com o mercado, o consignado privado pode sumir das prateleiras.

Fintechs não participaram das discussões e temem privilégios para grandes bancos

O acesso às informações e ao desenho do novo modelo também tem sido um foco de dissenso. Algumas fintechs – as empresas de tecnologia financeira e bancos digitais – estariam reticentes em relação à medida, já que não foram chamadas a participar das discussões.

Além disso, elas alegam que podem ficar em desvantagem caso haja acesso privilegiado das instituições bancárias tradicionais às informações do eSocial, por exemplo. O governo ainda não detalhou como será o acesso das instituições financeiras à plataforma.

Humberto Aillón afirma que, do ponto de vista tecnológico, não há entraves ao acesso dos bancos ao eSocial. A principal dificuldade será justamente definir as regras para a contratação do crédito e quais instituições poderão acessar essas informações.

Um aspecto importante é que o novo modelo de crédito não prevê a necessidade de convênio entre a empresa contratante do trabalhador alvo do consignado e o banco que irá ofertar o crédito. Atualmente, no caso de convênio entre empresa e banco, o consignado já é uma possibilidade. 

Aillón afirma que neste caso, além do convênio com a instituição financeira, são os departamentos de RH das empresas contratantes que definem algumas regras para a concessão, o que restringe e dificulta o acesso do colaborador a melhores condições, como juros mais baixos, por exemplo.

Ele destaca que um ponto relevante a ser considerado pelo governo é a necessidade de prover uma plataforma com uma jornada fluida. Dessa forma, o colaborador poderia comparar as taxas de juros ofertados pelas diversas instituições de forma simplificada. Além disso, também faria a adesão, o acompanhamento e pagamento de forma transparentes, facilitando o controle para todos os envolvidos na operação.

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