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O governo pretende pôr em funcionamento até agosto o programa "Voa, Brasil", que alegadamente busca "democratizar" o transporte aéreo e dar mais dinamismo ao setor. A principal medida foi revelada em março pelo ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França: a venda de passagens aéreas por R$ 200 para grupos específicos de consumidores.
O programa foi bem recebido pelas principais empresas do setor, que formaram um grupo de trabalho para debater a proposta. Apesar disso, ou por isso mesmo, a iniciativa embute riscos. Os principais, segundo especialistas, são o aumento de preços para os demais passageiros, para bancar o barateamento de parte das passagens; o desestímulo à concorrência e à eficiência; e a criação de uma relação vista como "perigosamente próxima" entre o governo e as grandes companhias.
Conforme declarações públicas do ministro, as passagens de R$ 200 serão direcionadas a servidores públicos federais, estaduais e municipais que ganham até R$ 6,8 mil mensais; aposentados e pensionistas da Previdência Social; e estudantes atendidos pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
Além da escolha do público-alvo, bastante específico, chama atenção a renda máxima dos servidores públicos que podem ser beneficiados pelo programa. Uma renda mensal de R$ 6,8 mil está muito distante das camadas mais pobres da população. Esse teto equivale a 2,4 vezes a renda média dos trabalhadores ocupados (R$ 2.880 no primeiro trimestre do ano, segundo o IBGE), e mais de cinco vezes o salário mínimo (R$ 1.320).
A prioridade será dada a quem não viajou nos últimos 12 meses, com permissão para compra de até quatro passagens, e o financiamento ficará a cargo de bancos públicos como Caixa e Banco do Brasil, com pagamento em até 12 vezes – mas sem subsídios, segundo França.
De acordo com o ministro, programa vai envolver assentos vagos das companhias aéreas na baixa temporada, que vai do fim do carnaval até junho e de agosto até novembro. No primeiro trimestre, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a taxa média de ocupação dos voos domésticos foi de 78,9%.
Em audiência no Senado em abril, França disse que a ideia partiu das próprias empresas, que o teriam procurado no início do ano pedindo apoio do governo para a redução de custos. Uma das principais queixas é o preço do combustível.
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Segundo o ministro, as aéreas teriam sugerido que o governo indicasse os CPFs das pessoas que não costumam voar – os "90% que não voam", nas palavras dele. Essas pessoas teriam acesso ao programa de passagens mais baratas.
"O que eles [empresas aéreas] nos pedem? Que nos aplicativo deles mesmos, sem nenhum subsídio, eles implantem os voos que vão ser a R$ 200 e nós vamos dizer que tal pessoa não voou há um ano, então pode comprar", afirmou.
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Tarifas aéreas bateram recorde em 2022
Não está claro como as companhias vão baixar preços de parte das passagens a R$ 200, num momento em que o movimento do setor é exatamente o oposto. Com empresas buscando resgatar a rentabilidade perdida nos últimos anos e pagar dívidas, deixando para trás o "legado" da pandemia de Covid-19, as tarifas bateram recordes no ano passado – e as perspectivas são de novos aumentos.
"Não existe nem almoço grátis nem preço de passagem mais baixo sem custos. Os empresários não vão querer diminuir suas margens de lucros. O efeito [do programa do governo], ao final, será uma combinação de demissões, às vezes invisíveis, envolvendo pessoal de baixa qualificação, com aumento de preços para todos os outros passageiros", diz Cláudio Shikida, professor do Ibmec-MG e especialista do Instituto Millenium.
A tarifa média de 2022 para voos domésticos foi de R$ 645, bem acima dos valores de 2020 (R$ 444) e 2021 (R$ 531) e também a maior da série histórica da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), iniciada em 2011. A tarifa média de janeiro de 2023 (R$ 592) foi a maior para o mês desde 2012. E a de fevereiro (R$ 572) ficou abaixo apenas das registradas em 2012 e 2014. Todos os valores foram atualizados pela inflação.
Especialista critica aceno a empresas que lideram setor concentrado
Para Shikida, o programa preparado pelo governo não visa ao aumento da concorrência nem à redução dos custos de entrada de novas empresas no mercado. Latam, Gol e Azul, as três maiores, dominam 99,6% do mercado, segundo a Anac.
"O governo prefere apostar na criação de uma relação perigosamente próxima com as poucas empresas que atuam no setor. Não é só uma casta artificial de consumidores que é criada. É pior: sinaliza-se para os poucos competidores que eles não terão que se esforçar em um ambiente mais competitivo. Basta que aceitem a proposta do governo", diz Shikida.
As líderes do setor, por sinal, parecem ter aprovado a ideia. A Latam Airlines disse que a proposta vai na direção de aumentar de forma sustentável as viagens de avião no país.
Procurada, a Gol não respondeu às questões da Gazeta do Povo. Em abril, porém, o presidente da empresa, Celso Ferrer, sinalizou otimismo. "O importante é que a gente use esse programa em momentos de baixa sazonalidade para dar acesso a clientes que não estão voando”, afirmou ao jornal "Valor".
A Azul, por sua vez, disse à Gazeta ver como positiva a iniciativa apresentada para estimular o acesso de mais brasileiros ao transporte aéreo. No fim de março, no entanto, o presidente executivo da companhia, John Rodgerson, fez uma ressalva: disse que a ideia faz sentido desde que os demais passageiros não paguem a conta – justamente o risco apontado por especialistas.
"A questão é como fazer isso de maneira que não seja como a meia-entrada no cinema, com as outras pessoas pagando mais caro por isso", afirmou à "Folha de S.Paulo".
O diretor da FGV Transportes, Marcus Quintella, vê com reservas a ideia do governo de ocupar a fatia de assentos "ociosos" das empresas. Buscar uma ocupação próxima de 100%, avalia, é inviável. "As empresas, normalmente, trabalham com uma reserva técnica, para atender, por exemplo, a passageiros que perderam conexões ou enfrentaram overbooking em outros voos, transporte de tripulantes", afirma.
Parte dessa reserva é destinada às compras de última hora, mais próximas dos horários de embarque, que costumam custar várias vezes a tarifa média.
Aviação se recupera aos poucos da pandemia
Em termos de movimento, a aviação comercial brasileira está se recuperando aos poucos dos efeitos da pandemia. Embora as empresas tenham procurado o governo em busca de ajuda, Quintella diz que o setor tende a retomar até o fim do ano os mesmos níveis de 2019, nos voos domésticos.
Em março, a demanda foi 5,1% inferior à do período do pré-pandemia e a oferta de assentos, 1,7% menor, segundo a Anac. "Há rotas entre capitais cujo movimento já corresponde a 95% do pré-pandemia", diz Quintella.
O cenário é outro para os voos internacionais, cuja oferta de assentos ainda é 21,9% inferior ao do período anterior à pandemia. "Dólar e juros elevados impedem que o brasileiro viaje para o exterior e a atratividade brasileira para negócios e turismo não é das melhores", afirma o especialista.
Uma expansão mais consistente do mercado, avalia Quintella, não virá de medidas como o "Voa, Brasil": "É, basicamente, uma questão de economia: se esta vai bem, o segmento também vai".
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