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Lula dá calote em fundo da reforma tributária e deixa a conta para o próximo governo

Governo Lula não pôs no Orçamento aporte em fundo de compensação da reforma tributária.
Governo Lula não pôs no Orçamento aporte em fundo de compensação da reforma tributária. (Foto: Carlos Ortega/EFE)

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A transição para a reforma tributária mal começou e o governo Lula já tropeçou no primeiro passo: deu um calote em empresas, estados e municípios ao não incluir na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025 o aporte de R$ 8 bilhões previsto para o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais (FCBF).

Para viabilizar a aprovação da Emenda Constitucional 132, que instituiu a reforma, a União assumiu o compromisso de fazer repasses escalonados ao FCBF, visando ressarcir a redução dos incentivos de ICMS ainda vigentes para diversos setores e entes da federação.

O acordo estabeleceu que os benefícios fiscais concedidos até 31 de maio de 2023 seriam compensados durante o período de transição da reforma, entre 2025 e 2032, já que não poderiam ser mantidos no novo modelo tributário.

O FCBF deve receber R$ 160 bilhões em aportes do Tesouro no período. A medida antecede a entrada em vigor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que substituirá o ICMS a partir de 2033. Após o aporte deste ano, o cronograma prevê valores crescentes até 2029 e decrescentes entre 2030 e 2032.

O valor reservado no Orçamento de 2025 foi simbólico, de apenas R$ 80,87 milhões, ou 1% do total previsto, e sua inclusão depende da aprovação de um projeto de crédito suplementar enviado pelo governo ao Congresso.

O pedido de R$ 8,3 bilhões — corrigidos pelo IPCA — foi aprovado pela Comissão Mista de Orçamento em 9 de setembro, mas não há previsão de votação no plenário. O governo argumenta que, por se tratar de um fundo contábil com repasses que só começam efetivamente em 2029, a alocação em 2025 não afetaria a meta fiscal.

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A sinalização, porém, é considerada “péssima”. “A reforma tributária já começa mal, com a contrapartida do governo deixando de ser cumprida logo de saída”, diz Paolo Stelati, especialista em Direito Tributário e sócio da Bornhausen & Zimmer Advogados.

Para ele, o “calote”, embora melhore os números do Orçamento no curto prazo, cria um passivo para o próximo governo, já que os aportes não realizados terão de ser compensados no exercício seguinte. “Está se criando uma dívida para o próximo governo”, afirma.

“É uma armadilha que o governo Lula está armando e que pode estourar no colo dele, caso seja reeleito. Mal comparando, como o que sucedeu com Dilma Rousseff (PT), quase uma pedalada fiscal.”

Tatiana Migiyama, especialista em gestão tributária da Fipecafi/Ipecafi, avalia que a dificuldade de regularizar as obrigações constitucionais em 2026, ano eleitoral, será ainda maior, e que o efeito será de uma “bola de neve”, recaindo inevitavelmente sobre quem vencer as urnas.

“Se o governo continuar empurrando os aportes no próximo ano, deixará um passivo a partir de 2027, além dos R$ 112 bilhões já contratados para os próximos quatro anos”, diz.

Para Renato Nunes, advogado e professor da FGV-SP, a dinâmica é a mesma dos precatórios, que passam de ano a ano. “O governo que não paga passa a ‘batata quente’ para o outro”, afirma. “É o que está sendo feito.”

Calote abre espaço para judicialização

O impacto para os contribuintes não é imediato. “Por enquanto não tem efeito prático, porque o repasse ainda não está sendo feito, diz Nunes. “Isso começa a acontecer efetivamente a partir de 2029.”

Mas, segundo Migiyama, os efeitos já aparecem: “A confiança está abalada e a segurança jurídica, comprometida”. O ponto central, afirma, é o descumprimento da Constituição. “Um compromisso constitucional não foi cumprido, o que abala totalmente a confiança e, estimula a judicialização e, no limite, também enfraquece a transição para o IBS", destaca.

“Para que o novo imposto — que substituirá ICMS e ISS — entre em vigor, será necessário quitar até 2033 o fundo de compensação prometido às empresas, em respeito aos Estados que concederam os incentivos fiscais.” Para o setor privado, o fundo era essencial para “dar previsibilidade às companhias”, influenciando decisões de investimento, expansão e contratação.

Nunes observa que as empresas, por serem "muito fragmentadas", têm “um poder muito pequeno” de contestação. A saída pode ser recorrer à Justiça por meio de federações setoriais. Já os estados, que também devem reclamar, terão mais respaldo institucional. “Aí pode ser um problema, que vai sobrar para o STF”, diz.

Conta pode sobrar para contribuinte

O caso remete, segundo ele, à disputa gerada pela Lei Kandir. “Na época, também não houve essa contrapartida do governo federal. Isso foi resolvido no Judiciário décadas depois.”

A lei, aprovada em 1996, desonerou do ICMS as exportações de produtos primários e semielaborados, mas retirou receita dos estados; as compensações da União foram irregulares, levando a um litígio bilionário encerrado apenas em 2020 com um acordo homologado pelo STF. Ainda assim, governadores alegam que o valor ficou muito aquém das perdas reais.

Para Stelati, o “calote inicial” do governo prenuncia aumento da carga tributária. Se as contas públicas não comportarem o débito criado agora, diz, “eles vão ter que achar um jeito de fazer essa recomposição”, possivelmente elevando alíquotas ou criando novas contribuições.

O tributarista lembra que medidas anunciadas como provisórias tendem a permanecer. Ele cita o PIS/Cofins — que “surgiu no início dos anos 1990 com o discurso de recompor a Previdência” e acabou se ampliando até representar mais de 20% da arrecadação federal — e o adicional de 10% do FGTS nas demissões sem justa causa, que “foi criado porque o governo federal não corrigiu adequadamente a Previdência Social” e só foi extinto em 2019.

Nunes avalia que o impacto acabará recaindo sobre a sociedade. “Ou o governo se endivida, ou corta despesa para sobrar dinheiro e honrar, ou arranca mais da população”, afirma. “Ou ainda pode imprimir moeda e gerar inflação. O dinheiro não brota, mesmo que eles imprimam — não brota.”

Transição da reforma pode estar comprometida

Para o economista Alexandre Manoel, do FGV Ibre e sócio da Global Intelligence and Analytics, o ressarcimento dos créditos para os estados sempre foi o "calcanhar de Aquiles" da reforma tributária, especialmente no caso de São Paulo. Mas o governo apostou que o novo desenho tributário aumentará a arrecadação.

“Como esse redesenho federal — esse IVA estadual e municipal — vai ter participação da Receita, a arrecadação deve vir um pouco acima, como sempre acontece a cada modificação”, afirma. Ainda assim, ressalta, o volume destinado à compensação dos estados, segundo ele, é “muito grande”.

Na prática, o risco é que a falta do aporte comprometa o cronograma da transição. “A reforma já nasceu sob desconfiança, marcada pela perda de autonomia de São Paulo e pela centralização da arrecadação na Câmara de Compensação”, afirma. "E agora o governo federal nem sequer fez o primeiro aporte do fundo. Não é um bom começo.”

Para ele, o risco de a reforma não se concretizar aumenta com a troca de governo, a partir de 2027, caso Lula não seja reeleito. “Dinheiro no setor público é questão de prioridade”, diz Manoel. “Se quem defendeu a reforma não põe o dinheiro, o próximo pode simplesmente alegar falta de espaço fiscal. Isso acende o sinal amarelo de que a transição pode não ocorrer.”

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