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Comércio exterior

Lula politiza parceria cambial com a China. O que realmente está em jogo nesse acordo

Os presidentes do Brasil e da China, Lula e Xi Jinping. (Foto: EFE/EPA/KEN ISHII)

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O anúncio de que Brasil e China poderão fazer transações comerciais diretamente em suas moedas, sem passar pelo dólar, não envolve exatamente o melhor dos cenários. Ocorre num momento em que a moeda chinesa, o yuan, é ostensivamente utilizada pela Rússia para escapar às sanções internacionais decorrentes da agressão à Ucrânia. Em paralelo, o acordo com o Brasil integra um esforço concentrado dos chineses para diminuir sua própria exposição ao dólar, no contexto do embate com o Ocidente por poder e influência globais.

Tantas questões geopolíticas sensíveis levantam naturalmente ressalvas quando à necessidade e ao momentum do acordo bilateral. Na visita à China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi além e embarcou num discurso antiamericano, atiçando o simbolismo político da decisão brasileira, e perguntou: “Por que não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? Quem é que decidiu que era o dólar?”.

É do jogo político fazer fumaça, questionar as razões para o uso do dólar, yuan ou qualquer outra moeda no comércio internacional. Na prática, contudo, o dólar domina as transações globais devido aos fundamentos da economia americana, que tem mercado de capitais aberto, alta liquidez de seus ativos e funciona num ambiente democrático e transparente. “Você confiaria mais em ter dólar ou yuan guardado dentro de casa?”, provoca Paulo Molinari, consultor da agência Safras & Mercado.

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Brasil chega atrasado aos negócios com yuan

Ideologias à parte, quem defende azeitar as trocas com moeda chinesa recorre ao pragmatismo econômico demonstrado inclusive pelos próprios Estados Unidos na relação com a China. Os americanos têm hoje uma "clearing house" – instituição financeira de compensações de moedas – que opera quase 3% das transações em yuan nos mercados internacionais. O JP Morgan foi escolhido para isso pelo Banco do Povo da China, o banco central chinês, em 2018.

“A gente, na verdade, está atrasado. Essas clearing houses já existem desde 2008. A China tem hoje mais de 27 delas espalhadas pelo mundo, inclusive nos EUA. Lá não é só um banco chinês, mas o JP Morgan também faz esse trabalho. E é assim no Japão, Reino Unido, Austrália e Canadá. Vai além de fechamentos de câmbio, envolve também empréstimos, depósitos, aplicações financeiras e derivativos”, diz Sergio Quadros, responsável pela instalação e abertura da primeira agência do Banco do Brasil na China, e que atualmente está à frente da SQ Asia Business Consulting.

Na avaliação do especialista em mercado chinês, a instalação de bancos para fazer compensação de transações em yuan e real vai abrir o leque de oportunidades de negócio. A China é o principal parceiro comercial do Brasil, destino de quase um terço das exportações totais. A corrente de comércio – soma de importações e exportações – com o país asiático movimenta US$ 150,5 bilhões por ano, enquanto com os Estados Unidos, segundo colocado, as trocas comerciais alcançaram US$ 88,7 bilhões em 2022.

Uso do yuan pode habilitar mais chineses a importar do Brasil

“Pequenas, médias e até grandes empresas têm um limite de exposição cambial dento da China. A negociação em yuan pode permitir que aumente a importação de produtos brasileiros. Pode beneficiar empresas chinesas que às vezes não conseguem acessar o mercado por dificuldade de linha de crédito em moeda estrangeira. Novos nichos de mercado devem se abrir para o Brasil”, sublinha Quadros.

Ressalvando “ser também um conservador”, Quadros reclama de um “mindset” brasileiro que, ao seu ver, costuma se alinhar de saída aos interesses norte-americanos, sem contrapartida. “Ficamos olhando para os EUA como se fossem nos salvar de alguma coisa. Eles nunca nos salvaram e nunca olharam para a América Latina como olham para a Europa e a Ásia. Não fizeram os mesmos esforços para nossa industrialização como fizeram com o Japão e a própria China. Então o Brasil tem que dar um salto de independência mesmo, sem viés ideológico ou político, mas sendo pragmático e fazendo acordos com o mundo inteiro”, avalia.Incrementar negócios em moedas nacionais, diminuindo a dependência ao dólar, é uma estratégia estudada há anos pelos países que compõem o Brics, bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Quem pode ter algum protagonismo nos próximos passos nesse sentido é a ex-presidente Dilma Rousseff, que, indicada por Lula, acabou de assumir a presidência do banco do bloco, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). “Estou certo de que a chegada da presidenta Dilma contribuirá para esse processo”, disse Lula.

Homem passeia em frente à sede do banco dos Brics, em Xangai, também conhecido como NDB Bank (Foto: Alex Plavevski / Agência EFE)

Como a Rússia, China quer menos exposição a embargos

No Brasil, o banco que fará a compensação do renmimbi, nome oficial da moeda chinesa, será o Bocom BBM, sucursal do Industrial and Commercial Banck of China (ICBC), maior banco do mundo. O país passa a participar assim da plataforma de pagamentos China Interbank Payment System (Cips), que opera de forma equivalente ao sistema ocidental Swift, utilizado por milhares de instituições financeiras em todo o mundo.

Desde o início da guerra da Ucrânia, o Cips tem sido crescentemente usado pela Rússia como válvula de escape de sanções aplicadas via Swift. No caso de uma invasão da China a Taiwan, certamente o Swift seria acionado pelos EUA como ferramenta de boicote.

O avanço do yuan como moeda global ocorre à moda chinesa, descolada do histórico anterior da libra esterlina e do dólar, por exemplo, que cresceram no século 20 por apresentarem alta liquidez e liberalização dos mercados. A internacionalização pretendida pela China, segundo estudo publicado no ano passado pelo Centro de Pesquisas de Políticas Econômicas (Cepr) europeu, não envolve a abertura de seu mercado de capitais, devido ao temor de ficar exposta a crises importadas e perder o rígido controle da economia.

Em vez disso, a China aposta num mundo multipolar envolvendo várias moedas coexistindo, como euro, dólar e yuans. Com isso em mente, os chineses vão costurando acordos para compensações de pagamentos com yuans, o que acaba, por tabela, levando os países a comporem reservas na moeda asiática.

No Brasil, mesmo sem câmara de compensação, as reservas em yuan alcançaram 5,37% do total em moeda estrangeira em 2022, ultrapassando as reservas em euro (4,74%), contra 80,42% do dólar. No mundo, os bancos centrais mantêm reservas equivalentes a cerca de US$ 300 bilhões em yuans.

No agro, quase tudo é indexado ao dólar

O agronegócio brasileiro tem a China como destino de 31,9% de todas suas exportações, e funciona amplamente ancorado no dólar. Não é exagero dizer que os produtores rurais levam uma vida indexada à moeda americana – desde os preços de fertilizantes e defensivos até o valor final de uma saca de soja ou milho, todas as contas são feitas em dólar.

Nesse hábitat, a possibilidade de fazer negócios em yuan tem inicialmente pouco apelo. Mas se uma eventual redução de custos na taxa de câmbio alterar o preço pago ao produtor, o jogo pode mudar, segundo Sergio Quadros. “Tudo depende do repasse da redução de custos na taxa de câmbio. O produtor vai fazer seus cálculos na hora do fechamento do contrato, para saber se vai usar o dólar ou o yuan”, pontua.

Há, por outro lado, quem veja chances muito remotas de que qualquer ganho em termos de redução de custos possa chegar ao produtor. “É uma despesa que pode diminuir para a trading ou banco, não para o produtor. Na verdade, pode ser que esses custos operacionais financeiros até aumentem numa transação com yuan”, avalia Paulo Molinari, consultor da agência Safras & Mercado. Em princípio, não há risco, nem temor, de que o dólar seja substituído pelo yuan ou qualquer outra moeda em curto prazo. Apesar de os Estados Unidos representarem 10% do comércio global, o dólar está presente em 40% das transações, enquanto o yuan responde por 4%. Há, contudo, preocupação com os efeitos políticos e econômicos futuros dessa adesão ao sistema chinês, que procura, abertamente, rivalizar com a moeda americana.

Agro teme dar poder demais ao seu principal cliente

Em tese, cria-se um cenário em que a China, principal destino de nossas exportações agrícolas, poderia chegar ao ponto de se sentir mais à vontade para exercer o poder de barganha e tentar impor preços abaixo da cotação internacional.

“Ela é maior compradora de soja, então, de repente, numa situação bilateral ela pode querer comprar soja em yuan mais barata do que o Brasil vende para o resto do mundo. Isso é uma derivação que a gente só vai conhecer mais à frente. Mas a mudança de moeda não muda nada. O que interessa é a precificação, que, na soja, significa Chicago mais prêmio. É difícil mudar essa lógica. O que muda é que em vez de ter uma liquidação só em dólar com a China, vamos ter uma liquidação em yuan”, diz Molinari.

Numa primeira avaliação, os produtores tendem a ficar com um pé atrás em relação a negócios em moeda chinesa. “Se pensar bem, a China é dona de quase tudo. Desde as empresas que compram a produção até as que vendem insumos. É um risco muito grande. Nosso sonho seria a gente mandar no preço, mas isso não acontece. Bem ou mal, nós temos esse mercado sólido, da cotação em dólar, que já existe há muito tempo e que todo mundo confia”, avalia o agricultor Zezé Sismeiro, vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Brasil (Aprosoja).

Precificação continuará a ser feita pelo dólar e Chicago

Nas commodities agrícolas, a força da Bolsa de Chicago, que regula os preços globais de soja e milho, vai além da questão de moeda. “É a praça de referência para saber o equilíbrio de oferta e demanda de grãos no mundo inteiro. Acho positivo que exista essa possibilidade de compensar as transações em moedas locais. Mas para quem lida com commodities, o mais natural é permanecer a transação em dólares. O próprio ativo é precificado e operado em dólar”, avalia Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Nem mesmo o analista Sergio Quadros, que é favorável à negociação com yuans, vê ameaças ao sistema apoiado no dólar. “O dólar vai continuar a ser a moeda de negociação com hegemonia por um bom tempo. O yuan entra como mais uma opção para as empresas fazerem seus negócios com a China”, afirma.

Serigati, da FGV, avalia que em relação às commodities há risco de um custo maior ao se operar fora da unidade de medida do próprio produto, que, hoje, ainda é o dólar. Ele vê, contudo, potencial para incrementar negócios em outras trocas comerciais.“Se for uma máquina ou equipamento, se o Lula vai lá, por exemplo, para fechar contratos de embarcações para papel e celulose, talvez faça mais sentido, porque não há um mercado internacional para isso. Ainda mais se vier associado a uma linha de financiamento. Mas, no caso das commodities, é difícil. Você terá um custo de transação adicional nesse processo [se usar yuan]”, diz.

Bravatas de Lula causam mal-estar desnecessário com os EUA

A criação de mecanismos de compensação em moedas locais, em si, não é ruim para as relações comerciais. Mas é um jogo que precisa ser jogado de olho nas consequências para as relações multilaterais. Felippe Serigati avalia que o Brasil precisa ser muito cuidadoso e diplomático ao tomar medidas que mexam no mapa geopolítico. “Talvez num futuro, espero que não seja próximo, o Brasil vai ter que dizer a qual bloco, nessa divisão, ele pertence. Se ao bloco ocidental ou ao bloco chinês-russo. No momento, em que não estamos sendo fortemente pressionados para dizer de qual lado estamos, temos que manter a máxima neutralidade possível. Vai chegar a hora em alguém lá fora vai dizer que não dá mais para ficar em cima do muro. Enquanto a gente puder manter essa postura mais neutra, acho que é só vantagens para nós”, conclui.O consultor Sergio Quadros, por sua vez, faz outra leitura. Segundo ele, diversificar as moedas reduz os riscos. “Para a China, a clearing house é muito mais um movimento geopolítico para se prevenir de eventuais sanções dos Estados Unidos. Mas, se lá na frente ocorrer alguma coisa com o Brasil e ele sofrer sanções, como ficaria a relação com o resto do mundo se não pudermos usar o dólar?”, questiona. Seja como for, na batalha geopolítica e comercial entre as duas principais economias globais, que coincidentemente são os dois maiores parceiros comerciais do Brasil, o que ninguém discorda é que qualquer passo, do lado de cá, tem que ser milimetricamente calculado. Gritar bravatas contra o dólar, como fez Lula, não parece somar muito aos interesses do Brasil.

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