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Criado para frear a expansão das despesas federais, o teto de gastos passa por um novo teste. O dispositivo foi burlado pelo menos cinco vezes no governo de Jair Bolsonaro (PL), que enfrenta dificuldade para fechar as contas deste ano, e sabe-se que será novamente furado na futura gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Lula articulou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para garantir – às margens do teto – o pagamento de despesas como o Auxílio Brasil de R$ 600, o programa Farmácia Popular e o reajuste real do salário mínimo.
O texto enviado ao Congresso Nacional retirava quase R$ 200 bilhões em despesas anuais do teto de gastos, por um período de quatro anos. A proposta foi modificada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e chega ao plenário da Casa nesta quarta-feira (7) com uma mescla de ampliação artificial do teto (R$ 145 bilhões) e despesas fora dele (R$ 23,9 bilhões), abrindo na prática um espaço fiscal de quase R$ 169 bilhões, por dois anos.
A PEC, porém, não ataca o que tem sido apontado como um dos principais problemas da área fiscal: de que forma a nova gestão vai sinalizar à sociedade e ao mercado que terá responsabilidade nos gastos públicos?
Por enquanto, a equipe de Lula não tem resposta. Longe de definir uma nova política fiscal, membros do gabinete de transição preferem focar em outras questões, como formas de ampliar o investimento público.
O teto de gastos foi aprovado em 2016 e começou a valer em 2017, durante o governo de Michel Temer (MDB). Pela norma, o crescimento das despesas do Executivo federal fica atrelado à inflação. O mecanismo foi criado com o objetivo de ajudar o governo a superar uma crise fiscal, impedindo o crescimento exagerado da dívida e reequilibrando as contas públicas.
Parte dos economistas defende que, após seguidos furos, o teto perdeu a credibilidade e o status de “âncora fiscal” do Executivo. Nesse contexto, parlamentares e analistas têm apresentado alternativas, que vão desde reformas no teto até a criação de novas regras para garantir que o governo federal tenha responsabilidade fiscal.
Ainda assim, não há perspectivas de que o Congresso discuta essas mudanças ainda em 2022. Em seu parecer sobre a PEC fura-teto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, o senador Alexandre Silveira (PSD-MG) cita outras propostas e reconhece a necessidade de definir uma "nova âncora fiscal" para o país.
No entanto, o relator alega que "este não é o momento adequado para detalhar como será essa âncora". O substitutivo aprovado pelos senadores define somente que o presidente deverá enviar ao Congresso, até 31 de agosto de 2023, um projeto de lei complementar que institua um regime fiscal sustentável "para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar condições adequadas ao crescimento econômico".
A Gazeta do Povo reuniu algumas das ideias que têm sido defendidas para a revisão ou substituição do teto de gastos. Parte delas está em propostas que, por ora, não devem ser discutidas no Congresso, mas que podem ser retomadas no futuro. Confira a seguir.
Data para revisão do teto
O coordenador da equipe de transição, Aloizio Mercadante (PT), já afirmou que uma das opções é estabelecer uma revisão periódica no teto de gastos. A ideia inicial era incluir a medida na PEC fura-teto, mas o assunto acabou ficando de fora do texto.
Originalmente, a emenda constitucional que estabeleceu o teto já previa que o presidente da República poderia propor, a partir do décimo ano de vigência da norma (2026), um projeto para revisar os limites das despesas do poder Executivo. Esse dispositivo, porém, foi retirado do texto constitucional com a aprovação da PEC dos Precatórios, em 2021.
A ideia citada por Mercadante é de restabelecer esse dispositivo de revisão do teto, mas sem definir quais alterações seriam feitas. Isso ficaria a cargo de uma nova lei a ser discutida pelo Congresso.
Novo limite de gastos
Uma PEC apresentada pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), prevê que o Congresso amplie o limite de gastos em R$ 80 bilhões em 2023. A partir de 2024, o teto consideraria o limite do ano anterior (2023) mais a variação da inflação.
O montante previsto para o ano que vem seria suficiente para garantir o Auxílio Brasil em R$ 600. Também ficariam excluídas do teto despesas com projetos socioambientais ou relativos às mudanças climáticas, custeadas por doações; e gastos de instituições federais de ensino. O restante das despesas previstas pela equipe da transição, porém, não estaria incluído, e teria de ser acomodado no Orçamento de outra forma.
O texto, batizado pelo senador de “PEC da Sustentabilidade Social”, também abre a possibilidade para que o teto seja revisto em 2023, ideia que acabou sendo incorporada à PEC fura-teto pelo relator no Senado.
Âncora fiscal relacionada à dívida pública
Outra PEC, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), revoga o teto de gastos. O texto, apelidado de “PEC da Reconstrução”, obriga o governo a enviar, no período de seis meses, uma proposta que estabeleça limites para a dívida consolidada da União.
O texto também inclui a obrigatoriedade da elaboração de um “Plano de Revisão Periódica de Gastos”, que incluiria a avaliação de políticas públicas.
Outra ideia, apresentada por técnicos do Tesouro Nacional, prevê que o governo tenha a possibilidade de aumentar as despesas acima da inflação, desde que considerados o tamanho da dívida pública e a sua trajetória, se em crescimento ou declínio.
O novo teto valeria a partir de 2024, com a permissão para que houvesse aumento real dos gastos em 2% acima da inflação. Em 2025, se a dívida estiver acima de 55% do Produto Interno Bruto (PIB) e em trajetória de crescimento, não seriam permitidos aumentos das despesas. Caso contrário, o governo poderia gastar 0,5% a mais.
Se a relação dívida/PIB for menor, entre 45% e 55%, seria permitido ao Executivo aumentar suas despesas em 0,5% caso a trajetória fosse de crescimento, e em 1% em caso de diminuição.
Com a dívida abaixo de 45% do PIB, por sua vez, poderia haver expansão real de 1% nos gastos se houver trajetória de aumento, ou de 2% em caso de queda.
Segundo o Banco Central, em outubro a Dívida Líquida do Governo Geral (DLGG) atingiu 58,5% do PIB. Esse seria o indicador ideal para a avaliação do desempenho fiscal do governo, segundo a proposta dos técnicos do Tesouro.
O relator da PEC fura-teto no Senado afirmou em seu parecer que a proposta de fixar um limite para a dívida pública "merecerá toda a atenção no debate futuro"."Não devemos, sob hipótese alguma, descartá-la de pronto", afirmou o parlamentar. "Entretanto, falta, nesse período de transição, o tempo necessário para avaliar essa e outras propostas para a âncora fiscal que, certamente, irão surgir ao longo dos debates", completou Silveira.
Novo regime pactuado a cada quatro anos
Mais uma proposta já em tramitação foi batizada de “PEC do Regime Fiscal Sustentável”. Apresentado pela senadora Leila Barros (PDT-DF) a partir de discussões do movimento "Elas no Orçamento", a proposta prevê um novo marco fiscal, já que considera que o teto de gastos “tem se revelado frágil para gerar a necessária priorização das ações de governo e assegurar consistência e qualidade à gestão das políticas públicas”.
A ideia é que as prioridades do governo sejam discutidas no início de cada mandato, constituindo compromissos quadrienais do Executivo.
Seriam utilizados como instrumentos:
- uma meta de endividamento público;
- diretrizes de desenvolvimento econômico e social para o período mínimo de 12 anos;
- um quadro de entregas prioritárias do governo, alinhados à estratégia de desenvolvimento de longo prazo;
- um quadro de despesas de médio prazo compatível com o limite da dívida, contendo tetos quadrienais de despesas primárias; e
- a revisão de gastos diretos e indiretos.
Como forma de transição, o governo ficaria autorizado a gastar R$ 125 bilhões fora do teto enquanto o Congresso discute a proposta.
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Um teto para cada exercício
Em artigo publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" em fevereiro, o economista Felipe Salto, que foi diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) e hoje é secretário da Fazenda de São Paulo, defende uma espécie de “teto 2.0”.
Nessa configuração, o limite das despesas seria definido para cada ano. A conta seria feita diminuindo-se das receitas estimadas o valor da meta de resultado primário (a diferença entre receitas e despesas).
“Para ter claro, se a meta de primário for igual a R$ 50 bilhões e as receitas forem estimadas em R$ 2 trilhões, o teto de gastos teria de ser de R$ 1,950 trilhão”, afirmou o economista.
A meta de resultado primário seria calculada com base na trajetória estimada da dívida “e nos objetivos políticos fixados em lei e sinalizados ao mercado e à sociedade”. “A escolha pela contenção de gastos continuaria viva, como muitos, hoje, entendem necessário, mas condicionada também à capacidade de geração consistente de receitas”, defendeu Salto.
Teto "duplo" para ampliar o investimento
Em 2019, os economistas Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco apresentaram um estudo no qual defendiam uma reforma do teto de gastos. A ideia seria dividir o teto em dois limites distintos: um para a despesa total e outro para a despesa corrente.
A despesa corrente inclui os gastos para a manutenção e o funcionamento dos serviços públicos, como o pagamento de salários, dos juros da dívida e da compra de matérias-primas.
No caso do teto de despesas totais, os autores partem de um valor de referência para 2021 para estabelecer reajustes. Entre 2023 e 2026 esse valor inicial, de R$ 1,45 trilhão, poderia ter crescimento de 1% anualmente; de 2027 a 2030, de 1,5% ao ano; e de 2031 a 2036, de 2% ao ano.
Para as despesas correntes, o aumento seria 0,5 ponto percentual inferior ao estipulado para o teto de despesas totais nos mesmos intervalos.
Com esse arranjo, o objetivo seria dar mais espaço para o investimento público. Com o teto como está, esse espaço vem sendo comprimido, dando cada vez menos possibilidade ao Executivo para gastar fora do que é obrigatório ou essencial.
"Dessa forma, ao mesmo tempo em que se cria um espaço para a ampliação do investimento, impede-se o risco que se verificaria se ele simplesmente fosse excluído do teto: nesse caso, haveria um incentivo a uma forma de 'contabilidade criativa' para computar como investimento despesas que não o seriam", dizem os economistas no estudo. "Dado o teto da despesa total, esse incentivo desaparece. A criação do 'duplo teto' possibilitaria um 'corredor de investimento' que se ampliaria com o decorrer dos anos", completam os autores.