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O governo pretende apresentar ao Congresso até o final do mês um projeto de lei para regulamentar o trabalho por aplicativos. A tendência é de que ele encareça ou, no limite, até mesmo inviabilize negócios por plataformas digitais – como o Uber e o iFood – no país.
O projeto, segundo informações de bastidores coletadas pelo portal Jota, prevê alíquota de contribuição previdenciária de 27,5% e ganhos mínimos por hora trabalhada, de R$ 30 para motoristas e R$ 17 para entregadores. Do total da alíquota previdenciária, 20% seriam pagos pelas empresas e 7,5% pelos trabalhadores.
Questionado pela Gazeta do Povo, o Ministério do Trabalho disse que ainda não tem informações sobre o teor do texto do projeto de lei e que "as partes ainda estão em negociação". O prazo para definição se encerra no dia 30.
Advogados trabalhistas e especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo são unânimes em afirmar a necessidade de uma regulação que garanta algum nível de proteção previdenciária aos trabalhadores. Mas concordam também que, caso confirmadas as alíquotas que vieram a público, haverá encarecimento dos serviços aos usuários.
"Não há como as empresas não repassarem os custos", afirma Fernanda Silva, da unidade trabalhista do Madrona Fialho Advogados. "No limite, a contribuição pode inviabilizar o negócio e fazer as empresas deixarem o país."
Na mesma linha, o professor José Pastore, da FEA-USP, consultor em relações do trabalho e recursos humanos, classifica a alíquota como "muito exagerada". "A competitividade as plataformas está exatamente na flexibilidade de utilizar trabalhadores autônomos. Teriam que aumentar muito o preço ao consumidor", diz.
Eugenio Haizenreder, da RMMG Advogados e professor da PUC-RS, também questiona o valor da imposto previdenciário: "É preciso ter uma referência, algum estudo mostrando de onde saiu este percentual".
Para Haizenreder, no entanto, o maior problema do projeto é a imposição de uma regulação pelo governo. "É uma interferência do Estado numa relação privada", argumenta.
As plataformas, ressalta o professor, foram criadas num novo modelo de relação de trabalho e o próprio mercado poderia desenhar sua regulamentação. "O formato dos aplicativos exige independência e protagonismo dos atores envolvidos", acredita.
Para Pastore, os trabalhadores poderiam ser protegidos apenas com uma adequação na lei da Previdência para incluir as categorias por aplicativo. Ele lembra que a lei já prevê as figuras do trabalhador autônomo e do Microempreendedor Individual. "Não é o ideal, mas seria mais simples, acredita".
Estabilidade jurídica pode atrair investimentos
O ponto positivo apontado sobre a proposta é que o estabelecimento de regulação em lei pode dar alguma segurança jurídica para as empresas, que hoje estão à mercê das opiniões dos juízes encarregados de julgar essas questões.O trabalho por aplicativos tem sido alvo de ações na Justiça do Trabalho, impetradas principalmente pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP). Na semana passada, um juiz de primeira instância condenou a Uber a pagar uma indenização milionária por danos coletivos e a contratar todos os trabalhadores no regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Ocorre que o argumento do vinculo empregatício, acatado pelo juiz, já foi descartado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e por jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), mas os ruídos persistem."A regulamentação traria estabilidade jurídica e confiança para as empresas investirem", afirma Renan Duarte, do Madrona Fialho Advogados.
Regulação é desejo antigo do governo, que já classificou trabalho como degradante
A regulação do trabalho por aplicativos está na mira do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desde o início da gestão. No primeiro semestre, o ministro do Trabalho Luiz Marinho fez diversas críticas ao modelo, atribuindo a ele condições degradantes de trabalho.
Marinho chegou a dizer que oferecer somente contribuição à Previdência Social para os trabalhadores seria "muito pouco" e que as empresas não podem ter "lucro extravagante" enquanto há "superexploração do trabalho". Também cogitou usar os Correios em substituição ao Uber, caso a empresa deixasse o Brasil após a regulamentação.
O Ministério do Trabalho criou um grupo para discutir o tema, com a participação de empresas e representantes dos trabalhadores de aplicativos de transporte. Na pauta, além de ganhos mínimos e Previdência, entraram temas que vão desde vale-seguro, vale-refeição e indenização pelo uso dos veículos até a transparência do algoritmo, para que o trabalhador saiba o que determina a remuneração.Iniciadas em junho, as negociações terminaram na semana passada, sem acordo entre as partes. O principal ponto de divergência, entre os aplicativos de transporte, foi os valores propostos para remuneração mínima.Entre os entregadores, o maior impasse é a regulamentação da remuneração por "hora logada" na plataforma em vez de somente o tempo de “corrida”. O governo decidiu arbitrar o conflito com o projeto de lei.
Lula fala em "trabalho decente" na Assembleia da ONU
A decisão de arbitrar os conflitos por meio de um projeto de regulação vem à tona na mesma semana em que Lula abordou o tema sindical na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. O discurso ocorreu na terça-feira (19).
O Palácio do Planalto havia informado já em julho que a regulamentação do trabalho por aplicativo seria abordada pelo presidente, em defesa da necessidade de endurecimento dos países contra o trabalho precário.
No encontro com o presidente norte-americano, Joe Biden, na quarta (20), com a presença de sindicalistas dos dois países, Lula defendeu, em discurso, o "uso de tecnologia e das transições digitais em prol do trabalho decente".
Paradoxalmente, nos Estados Unidos praticamente não existe regulação. Países da Europa, por sua vez, adotam modelos distintos. Na Inglaterra e Espanha, por exemplo, a lei reconhece o trabalho formal, autônomo, e uma terceira categoria intermediária, onde se garante benefícios sociais e previdenciários ao trabalhador. Na Alemanha, o que define a relação é o grau de autonomia do trabalhador em relação à plataforma.
Para Haizenreder, o desafio é garantir a proteção social sem inviabilizar o emprego, do qual dependem os trabalhadores. Para Pastore, a forma ideal "o mundo ainda não achou".