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A construção de um plano como o Real, que completou 30 anos nesta segunda (1), seria muito mais complexa se a economia brasileira enfrentasse, na atualidade, os mesmos problemas. “Foi fruto de um grande arranjo econômico, político, jurídico e teórico que levou a uma redução planejada e consistente da inflação”, diz a especialista do Instituto Millenium e ex-secretária da Fazenda de Goiás, Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt.
O ex-presidente do Banco Central em duas oportunidades (1992-3 e 1995-7) e sócio da Tendências Consultoria, Gustavo Loyola, diz que hoje seria mais difícil elaborar algo similar devido à radicalização existente na sociedade. “A polarização tornaria mais difícil a obtenção de um consenso. Foi preciso muito diálogo na política e na sociedade”, destaca.
Ele lembra que independentemente da visão política, as pessoas perceberam que algo tinha de ser feito. A inflação superara os 13,3 trilhões porcento nos 15 anos anteriores ao Plano Real. E a alta acumulada de preços em 12 meses foi de 4.922,6%, em junho de 1994, para menos de 10%, dois anos depois. Na época, o PT foi um dos grupos políticos contrários às ideias dos economistas que trabalharam no plano de estabilização econômica.
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Quem também avalia que o cenário atual seria mais complexo para a aprovação de uma iniciativa como foi a do Plano Real é o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. “O excesso de polarização dificultaria o avanço nas discussões no Congresso. Foram muitas ideias conjuntas que foram debatidas.”
Transparência foi uma das marcas do Plano Real
Segundo o professor da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do conselho curador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, Simão SIlber, aponta que outro fator que garantiu que o Plano Real fosse bem-sucedido foi a transparência. “Nada foi compulsório. A passagem do cruzeiro real para o real, tendo a unidade real de valor (URV) no meio, não teve imbróglios jurídicos.”
Ele destaca que a grande coesão da sociedade existente à época também ajudou. “Ninguém aguentava mais o gambá no meio da sala. Era preferível ter mercadorias em casa do que dinheiro. Ele virava pó.”
O professor aponta que a partir de julho de 1994 houve uma espécie de resgate da cidadania. “Era como se parte da nacionalidade estivesse jogada no lixo, com o Plano Real passamos a ter uma moeda. Era uma iniquidade, uma injustiça, uma forma perversa de cobrar imposto.”
Além da inflação, outros fantasmas foram exorcizados
Loyola aponta que o grande legado que o real deixou para as gerações futuras foi a estabilização, mas outros fantasmas também foram “exorcizados”. Alguns foram antes, outros depois.
Um dos mais importantes era o da renegociação da dívida externa. A crise havia explodido em agosto de 1982 e a solução com os bancos internacionais, liderada pelo negociador da dívida externa, Pedro Malan, só viria dez anos depois.
Não foi preciso acordo com o Tesouro americano ou com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para concluir as negociações, que foram homologadas pelo Senado em julho de 1993. O Brasil oferecera como garantia títulos americanos, comprados secretamente, ao longo do tempo, em momentos em que estes estavam em baixa.
As baixas reservas internacionais, que naquele mês eram de US$ 24,5 bilhões, eram também um problema adicional. Havia dificuldade para reagir a cenários adversos, como os que viriam a ocorrer com a crise financeira nos países emergentes, entre 1997 e 1998, e que levaram à flutuação do câmbio brasileiro no início de 1999. Hoje, o Brasil tem uma situação bem mais confortável: segundo o Banco Central, as reservas somavam US$ 355,6 bilhões em maio, o maior nível desde fevereiro de 2022.
Silber, da Fipe/USP, destaca que outro legado importante do plano real foi a previsibilidade no orçamento doméstico. A inflação que o Brasil teve nos 30 anos do real foi de 708%, sete vezes menor do que a registrada nos 12 meses que antecederam a implantação da moeda (4.922,6%).
“Foi melhor para as pessoas de menor renda, pois protegia seu dinheiro”, diz o professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV EPGE), Sérgio Werlang, que foi diretor de Política Econômica do Banco Central (BC) entre 1999 e 2000.
A desigualdade de renda, medida pelo Índice de Gini, onde o zero corresponde à igualdade absoluta e o um à desigualdade, caiu de 0,614, em 1990, para 0,518, em 2014, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No quarto trimestre de 2023, segundo o Instituto de Planejamento e Economia Aplicada (Ipea), esse indicador era de 0,523. Isso quer dizer que os 10% da população brasileira com os maiores rendimentos domiciliares per capita tiveram uma renda 14,4 vezes superior à dos 40% com os menores rendimentos.
“A inflação maior dava pinotes e ela acentuava a desigualdade de renda da sociedade brasileira. Com o fim das fortes altas de preço, os indivíduos passaram a ter muita informação sobre o que é caro e o que é barato. Foi uma dádiva para a sociedade”, destaca o professor da USP.
Questão fiscal é principal calcanhar de Aquiles
O ex-presidente da autoridade monetária aponta que não há como retroceder nos legados do Plano Real. Segundo ele, novos avanços vieram com as reformas trabalhista e previdenciária. E há esperança em relação à reforma tributária, que está em tramitação no Congresso.
Outro trunfo, que é citado por Werlang, da FGV EPGE, é a maior transparência em relação às contas públicas. Ele considera que na primeira fase do real, que durou até o início de 1999, poderia ter sido dada mais ênfase à questão fiscal. Segundo o professor, houve uma grande aposta na âncora cambial.
“Avançamos muito desde 1994 na questão fiscal, mas não foi o suficiente. É preciso melhorar a situação fiscal com a manutenção dos gastos em termos reais constantes”, diz Loyola. Um dos termômetros desse problema é o aumento do endividamento público, que em maio estava em 76,84% do PIB, de acordo com o Banco Central. No final do governo Temer, em dezembro de 2018, era de 75,27% do PIB, e no de Bolsonaro, em dezembro de 2022, 71,68%.
Os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que não é um problema que vá ser resolvido do dia para a noite. As raízes do problema remontam a antes do Plano Real.
Um ajuste fiscal chegou a ser feito naquela época, mas deu-se ênfase ao aumento da arrecadação, com aumentos no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e no PIS/Cofins. Naquela época também foi criado o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), criado em 1994, e que foi substituído pela Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), que perdurou até o final de 2007.
Silber aponta que a recuperação da situação fiscal naquela época foi fundamental para criar as bases de sustentação do real, mas foi feito de uma forma bastante perversa: “não houve ajuste dos gastos públicos, mas sim, aumento da carga tributária.
Segundo o Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), ela passou de 23,55% do PIB, em 1991, para 32,44%, em 2023. O principal destinatário dos recursos é a União, para onde foi 20,09% do PIB no ano passado.
A solução para esse problema não é imediata, porém, mais cedo ou mais tarde, exigirá que, especialmente, a União promova cortes em seus gastos. “A abordagem terá de ser gradual”, destaca o ex-presidente do BC. Só assim, será possível reduzir uma das principais travas que impedem um maior crescimento da economia brasileira: as elevadas taxas reais de juro.
Isto passa por conquistar a confiança do mercado, por meio da estabilização da trajetória crescente do endividamento público, algo que, nas atuais circunstâncias, só poderá ser obtido em 2032, a um nível de 88% do PIB, segundo projeções do boletim Focus do BC.
Este é o segundo capítulo dos três capítulos da série "A era do Real". O primeiro mostrou que o Plano Real trouxe a estabilidade e "abriu os olhos" para outros problemas do Brasil. O terceiro vai mostrar que o Brasil tem novos desafios na área econômica, passados 30 anos da adoção da moeda.