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As discussões envolvendo a reforma tributária se arrastam há anos, com foco na simplificação do sistema e na eliminação de distorções. Um grupo de mulheres tributaristas, entretanto, afirma que um elemento essencial tem escapado ao debate: o impacto dos tributos na perpetuação das desigualdades de gênero.
Para chamar a atenção para o tema, o grupo – chamado "Tributos a Elas" e ligado à Fundação Getulio Vargas (FGV) – produziu um documento destacando como a configuração atual do sistema tributário nacional onera mais as mulheres do que os homens (veja a íntegra abaixo).
"É uma questão que não está sendo debatida na reforma tributária, mas isso decorre de um cenário maior. Não temos um debate sobre tributação e gênero na academia tributária brasileira. Não é algo trivial, mas não é uma invencionice nossa: essa discussão já é antiga nos EUA, no Canadá, na França, em países da África", disse Tathiane Piscitelli, professora da FGV e uma das coordenadoras do grupo, em conversa com a Gazeta do Povo.
Perguntei à pesquisadora por que esse assunto vem sendo discutido em outros lugares há tanto tempo, mas não chegou ao Brasil. "Vou te dar uma impressão minha, não é nada científico", ressaltou Piscitelli. "Isso decorre do fato de que a academia tributária brasileira é extremamente masculina. A maioria dos grandes tributaristas consolidados é homem. Isso não é uma questão para eles", explicou a professora.
Sistema tributário neutro? Não combater desigualdades é distorcivo, defendem pesquisadoras
Mas o que, afinal, significa olhar para o sistema tributário com um olhar de gênero? Entender o argumento das pesquisadoras passa por reconhecer desigualdades já existentes na sociedade, que acabam sendo reforçadas por um sistema tributário que se pretende neutro.
"Existe uma ideia de que o Direito Tributário sempre foi um campo neutro da ciência, que não deveria dialogar com nenhum parâmetro de justiça. É uma ideia dissociada dos próprios princípios que estão na Constituição, de um estado que reduz desigualdades sociais", explicou Anna Priscylla Prado, professora de Direito Tributário e Constitucional e membro do grupo.
Na prática, isso significa dizer que a noção de que o sistema tributário deve ser neutro – um dos princípios lembrados por tributaristas na formulação de propostas de reforma – perde o sentido se considerarmos as desigualdades já existentes na sociedade. Ou seja, a cobrança de tributos pode não promover novas distorções, mas, ao não combater as já existentes, acaba, de qualquer forma, não sendo neutra.
"Não estamos dizendo que o sistema tributário foi montado para aumentar as desigualdades. A questão é que há toda uma construção cultural, social e econômica que não levou e não leva em consideração as profundas desigualdades geradas por décadas. O sistema, efetivamente, não é neutro. Ele prejudica as mulheres", disse Núbia Castilhos, procuradora-geral que também coordena o grupo.
Como o sistema tributário onera mais as mulheres do que os homens
As pesquisadoras dão exemplos práticos de como isso acontece. Primeiro, basta considerar que o sistema tributário, na configuração atual, é regressivo, penalizando os mais pobres. E, conforme apontam dados do IBGE, as mulheres recebem, em média, salários menores do que os dos homens.
Mas, para além dessa configuração mais ampla, que coloca as mulheres no extrato mais baixo da distribuição de renda no país, há casos concretos de como elas são mais penalizadas do que os homens pelo sistema tributário brasileiro. Um deles é a tributação dos valores pagos como pensão alimentícia.
Pela regra atual, quem paga a pensão – grupo constituído majoritariamente por homens, segundo dados da própria Receita Federal – tem o direito de deduzir o valor na declaração do Imposto de Renda. Quem recebe – em sua maioria, mulheres –, ao contrário, precisa pagar imposto sobre o montante.
"A tributação é somada ao fato de que a mulher está cuidando da criança, ou seja, tem os custos emocional e financeiro atribuídos a ela. É a mulher, também, que gasta diariamente com os itens necessários para o cotidiano da criança, ou seja, que é onerada pela tributação no consumo", acrescentou Tathiane Piscitelli.
"A pensão é algo que, na nossa visão, não constitui acréscimo patrimonial e, por isso, não deveria estar no âmbito do IR. O dinheiro é destinado para despesas com a prole", completou Núbia Castilhos.
Outro exemplo é a tributação sobre os absorventes higiênicos – produto consumido, fundamentalmente, por mulheres. No Brasil, a carga tributária sobre o absorvente é de 27,5%. "Um pacote de absorvente higiênico que custa R$ 2,28 contém, aproximadamente, R$ 0,62 só de tributos", detalha o documento produzido pelas pesquisadoras. Na Alemanha, por outro lado, a carga tributária sobre o mesmo produto é de 7%.
Como combater as distorções? Pesquisadoras apresentam propostas a parlamentares
Além de chamar a atenção para a configuração desigual do sistema tributário atual, considerando esse olhar de gênero, o documento produzido pelo grupo também faz uma série de propostas para mitigar esse quadro. Estão na lista propostas como a isenção de tributação sobre absorventes higiênicos, a desoneração de anticoncepcionais e de medicação hormonal, a isenção do IR para a pensão alimentícia e incentivos para a contratação de mulheres vítimas de violência.
Questionei se essas ideias não vão na contramão do que vem sendo discutido no Parlamento, no sentido de reduzir benefícios fiscais, os chamados gastos tributários. "Considerando que a tributação no Brasil tem incidência maior sobre o consumo, e que as mulheres recebem menos – ou seja, pagam mais –, as nossas propostas não são um benefício fiscal, mas sim uma forma de compensação dessa injustiça fiscal", defendeu Simone Castro, tributarista que também integra o grupo.
"Nesse processo de reavaliação dos benefícios tributários, precisamos ter a análise quanto à efetividade. Qual é o tipo de gasto e a quem ele beneficia? O fato de haver benefícios fiscais que aumentam a desigualdade não tira a legitimidade do que estamos propondo. Os benefícios existem e são um instrumento que deve ser utilizado", completou Piscitelli.
O documento vem sendo apresentado pelas pesquisadoras a parlamentares. A expectativa do grupo é de que ao menos parte da agenda seja incorporada nas discussões da reforma tributária.