Em entrevista à Gazeta do Povo, o PhD em Psicologia Experimental da Cognição e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Fernando César Capovilla fala sobre o que há de mais recente em conhecimento científico e recursos tecnológicos para potencializar o desenvolvimento educacional de crianças e adolescentes com deficiências.
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Membro do Conselho Nacional e Educação (CNE), onde preside a Comissão de Alfabetização, e autor de 60 livros e mais de 400 trabalhos científicos em desenvolvimento e distúrbios de linguagem oral, escrita e de sinais, Capovilla explica que o potencial de desenvolvimento das crianças e adolescente com deficiências é bastante amplo desde que todos os envolvidos no processo educativo – como pais, irmãos, babás e profissionais de educação – tenham as ferramentas e os conhecimentos necessários.
Para o pesquisado, atualmente, há um “arsenal” de recursos e novos conhecimentos que permitem progressos bastante significativos, fazendo com que crianças que possuem diferentes distúrbios neurológicos e são atendidas pela educação especial consigam alcançar o desenvolvimento pleno de seus potenciais.
O que os estudos científicos têm evidenciado sobre as formas mais adequadas de educação para crianças com distúrbios neuromotores, como é o caso da paralisia cerebral?
Fernando Capovilla: No caso da paralisia cerebral com anartria (incapacidade de articular a fala) e, especialmente, tetraplegia (paralisia nos quatro membros), é bastante eficaz a introdução de aplicativos de comunicação alternativa, baseada em figuras, pictogramas, desenhos de linha e fotografias simples que, quando selecionados por movimentos simples de motricidade mais grossa, produzem as palavras faladas correspondentes.
Pais, irmãos, babás e educadores devem sempre falar conspicuamente, e com prosódia [variações de frequência, intensidade e duração que, durante o discurso, vão conferindo sentido ao que está sendo dito] adequada e carinhosa, palavras que se referem a tudo o que ocorre com o bebê em todas as atividades, como banho (frio, calor, cheirinho, toalha, secar, etc.), refeições (fome, papinha, colher, leite, maçã, doce, azedo, por exemplo) e brincadeiras (bola, cubo, quadrado, redondo, grande, pequeno, vermelho, azul, etc.).
Se a criança com paralisia cerebral também for surda, deve-se recorrer aos sinais da língua de sinais, emitidos com adequada, rica e envolvente prosódia gestual.
A partir do diagnóstico da criança, feito na mais tenra idade, os profissionais (pedagogos, psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos) das creches e escolas de educação infantil devem assessorar os pais e irmãos ensinando como introduzir a comunicação alternativa e os sinais.
A criança não deve ser privada de comunicação, que inicialmente deve ser paralinguística (não verbal), gestual, mímica e pantomímica; e progressivamente mais linguística em compreensão de fala e de sinais adequados à situação, e na emissão de alguns sinais que forem possíveis articular.
Para bebês a partir dos 18 meses, pais, irmãos, babás e educadores podem empregar figuras grandes e coloridas associadas às situações reais. A criança deve poder apontar para figuras grandes e coloridas escolhendo o que comer na próxima colheradinha, que atividade de brincadeira quer, que cor de gorrinho ou de blusinha quer, que bonequinho de borracha quer brincar no banho e assim por diante.
Em seguida, cada vez mais aplicativos de comunicação alternativa adequados à idade e ao grau de desenvolvimento da criança devem ser usados para permitir a ela se comunicar com os adultos, regular seu mundo, ajudar a decidir o que vai acontecer com ela, e, além de fazer escolhas e pedidos, aprender a começar a fazer, também, perguntas.
O uso desses sistemas de comunicação promove o desenvolvimento das competências cognitivas de atenção, memória e prontidão para resposta e vai criando os pré-requisitos para a introdução de alfabetização por meio de aplicativos, que também podem ser utilizados em tablets.
A tecnologia se desenvolve continuamente, e a cada geração podemos tirar proveito dela para construir a arquitetura cognitiva da criança com paralisia cerebral e outras comorbidades eventualmente associadas, como deficiência intelectual, auditiva e visual.
E quanto a crianças com deficiências neurossensoriais, a exemplo dos natissurdos, naticegos, surdocegos?
Fernando Capovilla: Crianças com essas deficiências devem receber acolhimento, carinho e educação desde o nascimento na modalidade sensorial apropriada. É muito importante que, desde o diagnóstico precoce, os pais recebam aconselhamento psicológico para a estabilidade emocional de cada um e para a estabilidade relacional do casal e da família como um todo.
Esse aconselhamento deve envolver orientações adequadas quanto ao virtualmente ilimitado potencial da criança nas mais diversas áreas e às necessidades particulares de adaptações caso a caso, que serão de grande importância para permitir que a criança alcance o desenvolvimento pleno de seus potenciais.
O limite último desse desenvolvimento é desconhecido e pode se expandir cada vez mais para os confins do possível, desde que possamos fornecer a ela tudo o que de melhor existe de acessível no atual estado de nosso conhecimento.
As crianças natissurdas videntes precisarão que seus pais aprendam sinais desde cedinho e introduzam esses sinais adequados nas respectivas atividades do dia a dia.
Assim como os pais de crianças neurotípicas (isto é, sem qualquer distúrbio neurológico) devem nomear tudo o que ocorre no entorno da criança a partir da fala com expressão facial e prosódia de fala e gestualidade envolventes, para que a criança vá se familiarizando com os nomes das coisas e das situações. Os pais da criança natissurda devem nomear tudo à volta imediata da criança com sinais correspondentes e expressão facial e prosódia gestual apropriada e envolvente. Isso para que a criança vá se familiarizando com os sinais das coisas, situações e eventos e possa, no tempo certo (aos 18-24 meses), começar a emitir sinais nomeando tudo à volta, participando das interações, fazendo pedidos em sinais.
Todos os marcos de desenvolvimento da criança neurotípica podem ser alcançados na mesma idade pela criança natissurda típica. Depois de aprenderem os sinais, essas crianças precisarão aprender soletração digital (datilologia) e, finalmente, leitura orofacial, que emerge à medida que a leitura e a escrita alfabética se desenvolvem. Elas precisarão, também, de recursos de alfabetização – como Cued Speech e Visual Phonics. Esses recursos são usados na própria Gallaudet University (Clerc Center) para alfabetizar crianças surdas videntes.
A criança naticega precisará que toda a estimulação oral-aural se faça acompanhar de estimulação tátil em substituição da estimulação visual nas atividades lúdicas de psicomotricidade. Assim, no lugar de padrões visuais, como figuras, podemos usar miniaturas grandes, médias e pequenas; de textura áspera, lisa, rugosa, hachurada, pontilhada, granulada, com graus distintos de gramatura; frias, mornas ou neutras em temperatura; maleáveis ou duras, etc.
Podemos ensinar às crianças conceitos espaciais, como o de perspectiva e sombra, desenvolvendo uma consciência tátil-cinestésica do espaço como substituta da consciência visoespacial. Podemos trabalhar imagética espacial na modalidade proprioceptiva e cinestésica, e ensiná-la a fazer contas e cálculos de cabeça baseados nessa imagética.
Toda a trigonometria, toda a geometria descritiva, todo o campo da matemática, da física, da música e da linguagem (por meio do sistema Braille, dentre muitos outros recursos auxiliares disponíveis), tudo estará acessível à sua mente no grau certo, desde a mais tenra idade.
As crianças natissurdocegas combinam as duas necessidades – as das crianças surdas e as das cegas. Precisarão de língua de sinais tátil desde a mais tenra idade. Em seguida, precisarão também aprender soletração digital (datilologia) tátil, e leitura orofacial tátil usando sistemas como Tadoma.
Há toda uma ciência e vários conjuntos complexos de competências necessários para adequadamente educar essas crianças desde cedo, para que seu potencial pleno se realize. Nesse ínterim, os pais podem ser informados de casos muito bem-sucedidos, como o da poliglota Helen Keller e de sua professora Anne Sullivan, que tiveram grande sucesso usando recursos como esses. Deve-se notar que Keller não era natissurdocega congênita, já que perdeu a audição e a visão em fase perilingual. Mesmo assim, o arsenal de recursos hoje é ainda maior do que no passado, e progressos muito maiores podem ser obtidos.
Por fim, o que os estudos têm apontado quanto a melhores resultados no processo educativo de crianças com transtornos neurolinguísticos, como dislexia do desenvolvimento e outros tipos de transtornos do neurodesenvolvimento?
Fernando Capovilla: A professora Nadine Gaab, das escolas de Medicina e de Educação da Harvard University, demonstrou que o fenótipo anatômico da dislexia do desenvolvimento é identificável já a partir dos 12 meses de idade por meio de neuroimagem. Detectado esse fenótipo anatômico, a questão é como evitar a manifestação do fenótipo cognitivo comportamental caracterizado como o fracasso na aprendizagem de leitura e de escrita.
Até bem recentemente, essas crianças eram diagnosticadas somente aos 8-9 anos de idade, por meio de um desempenho de leitura atrasado em dois desvios-padrão do desempenho médio de seus pares. O problema é que, com essa identificação tardia, já era tarde demais para começar a intervir, uma vez que a criança já tinha perdido a maior parte de sua plasticidade neural.
A chave é sempre: diagnóstico precoce, intervenção precoce. As pesquisas demonstram a eficácia de programas de estimulação lúdica para o desenvolvimento da compreensão auditiva e da expressão verbal dos 18 meses aos 6 anos (para desenvolvimento do vocabulário auditivo e expressivo); e de programas de intervenção lúdica metafonológica e fônica dos 3 aos 6 anos em tirar proveito da plasticidade neural e em prevenir a manifestação fenotípica da dislexia do desenvolvimento em termos de fracasso de aquisição de leitura e escrita por ocasião da alfabetização fônica aos 6-7 anos de idade.
A dislexia do desenvolvimento pode ser prevenida com intervenção lúdica precoce envolvendo uma série de atividades metafonológicas e fônicas lúdicas, acompanhadas de atividades neurossensoriais, de psicomotricidade e de musicalização. A musicalização envolve a habilidade de mapear e reproduzir, por meio de instrumentos de percussão, ritmos diferentes dentro de cada compasso.
A musicalização engaja a circuitaria subcortical dos núcleos afetivo-emocionais e de automatismos sensoriomotores (amígdala e núcleos da base) e é instrumento importante para a integração sensoriomotora que se completa com a dança e o canto no ritmo da percussão. Por meio dessas ferramentas, a criança se engaja emocionalmente e ludicamente no mapeamento acústico-proprioceptivo-cinestésico da fala por meio da sincronização entre fala e canto no ritmo marcado por mãos e pelos pés e por braços e pernas, criando uma consciência incorporada da linguagem e de suas propriedades temporais.
Esse mapeamento temporal concentra a atenção da criança nos períodos certos. Dá a ela prontidão de emissão da fala na hora certa, e aperfeiçoa a precisão e velocidade do processamento temporal, que é uma das fraquezas do disléxico do desenvolvimento.
Educação Infantil é o foco. Estimulação precoce lúdica para engajamento ativo das crianças no processamento da linguagem falada, no brincar com a fala, com seus segmentos, em parlendas, atividades com fantoches e jogos de percurso, como descrevemos em nosso livro clássico Alfabetização: Método Fônico, dentre muitos outros, inclusive o ABC, do Ministério da Educação. A musicalização também é um recurso poderoso para a alfabetização, como ilustrado no livro-CD intitulado Maravilhamento, de autoria do secretário Nadalim [Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização do MEC], e dos colegas Chico dos Bonecos e Colherim.
Há desafios para a alfabetização em muitos outros transtornos do neurodesenvolvimento, como no Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e no Distúrbio do Sistema Vestibular. O curioso é que nesses dois casos, as pesquisas em neurociências cognitivas apontam para a eficácia da mesma prescrição básica que mencionei aqui.
O método fônico é eficaz, porque a escrita mapeia, basicamente, a fala. A isso nos referimos como o Princípio Fonográfico ou, mais propriamente, lalográfico, uma vez que a fala é recebida não apenas por audição como, também, pela visão, como ocorre na leitura orofacial visual por surdos videntes.
Um ponto adicional e digno de nota é que a escrita mapeia a fala para mapear o significado. A isso chamamos de Princípio Semiográfico. Se a língua materna do educando diferir da língua em que ele deverá ser alfabetizado, o método fônico deve ser precedido de adaptações especiais.
Isso ocorre, por exemplo, no caso da Libras para a criança natissurda; do Tupi ou outro dentre os 274 idiomas ameríndios para a criança indígena; do Espanhol para o filho de imigrantes venezuelanos ou bolivianos que fala espanhol em casa, entre outros. Antes de ser alfabetizada em Português, essa criança deverá usar a sua língua nativa materna como metalinguagem para aprender Português e aprender as palavras e a composição das palavras nessa língua.
Assim, a língua materna da criança deve ser incorporada ao ensino para facilitar a aquisição do Português, do significado das palavras na língua e da composição dessas palavras em termos das unidades de significado (morfemas). Ou seja, aprender a decodificar o significado das palavras a partir de sua composição morfêmica usando a língua nativa materna como metalinguagem, como ferramenta cognitiva.
Essa é uma das adaptações necessárias da alfabetização fônica dessas crianças. No caso do surdo urbano e do surdo indígena, a língua de sinais é de importância enorme, e essas crianças, juntamente com seus pais, devem ser acolhidas desde a mais tenra idade nas escolas sinalizadoras de educação infantil.
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