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Graphogame: jogo virtual é aposta para erradicar o analfabetismo
Graphogame é voltado a crianças entre 4 e 6 anos| Foto: Divulgação

Um jogo virtual, a ser lançado nos próximos dias, é a nova aposta do governo federal para ajudar crianças entre 4 e 9 anos tanto na preparação para a aquisição da leitura como na própria alfabetização formal. Trata-se do Graphogame, material digital de aprendizagem que dá ênfase ao conhecimento alfabético e à consciência fonológica. Ele é resultado de uma iniciativa científica internacional.

O Ministério da Educação (MEC) espera que esse seja um instrumento de auxílio à literacia familiar, mas, em especial, uma ferramenta para os professores utilizarem nas escolas. O aplicativo será disponível em versão offline. Questionado sobre como a ação alcançará famílias socioeconomicamente vulneráveis, o MEC não informou qual será a estratégia.

O jogo é resultado de uma iniciativa acadêmica global que se dedica a criar soluções e ferramentas voltadas à aquisição da alfabetização à luz das evidências da ciência cognitiva da leitura. Mas decorre, originalmente, de anos de pesquisas longitudinais feitas na Universidade de Jyväskylä, na Finlândia, cujo propósito era identificar e desenvolver métodos de apoio a crianças finlandesas com dislexia.

Para atestar a efetividade da ferramenta, pesquisadores realizaram estudos em diferentes países, em especial com crianças em extrema vulnerabilidade socioeconômica. Berço do Graphogame, a Finlândia utiliza o jogo com todos os alunos em fase de alfabetização há pelo menos 10 anos. Outras 20 nações também o incorporaram às suas políticas públicas de educação.

A pasta previa lançar o jogo nos primeiros meses da pandemia, mas afirma não ter sido possível. A adaptação do conteúdo do Graphogame para o português foi realizada pela equipe do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer), da PUC, liderada por Augusto Buchweitz, conselheiro na Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), pesquisador no InsCer e professor da Escola de Ciências da Saúde da PUC.

No Brasil, a universidade possui exclusividade de produção e desenvolvimento do Graphogame, razão pela qual a compra do software se deu por meio legal de dispensa de licitação, prevista na Lei 8.666/1993. O MEC investiu pouco mais de R$ 100 mil na iniciativa. Ao longo dos próximos meses, a instituição realizará pesquisas amostrais em parceria com secretarias de educação. O objetivo é verificar o desempenho dos alunos e a eficiência do game em apoio à alfabetização.

Especialistas divergem sobre os benefícios das chamadas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) na educação infantil. Por um lado, há quem as veja como forma complementar à educação tradicional. Em contrapartida, pesquisadores, cujas evidências ainda não estão consolidadas, apontam para possíveis danos cerebrais provocados pelo uso excessivo das "telas". O MEC divulgará um guia de orientação no qual sugere que alunos utilizem o jogo por 15 minutos ao dia, no máximo.

"Trata-se mais do que você ensina do que os meios. A Finlândia, que não utiliza muita tecnologia, apesar do Graphogame, alfabetiza tão bem quanto a Coreia do Sul, país onde reconhecidamente há muita tecnologia", afirma Augusto Buchweitz. "Obviamente, aprender apenas com tela não funciona. Os professores podem investir na melhor tecnologia do mundo, mas, se a maneira como você está alfabetizando não é mais adequada, não irá funcionar".

Embasamento científico por trás de Graphogame

Os pesquisadores responsáveis pelo Graphogame ressaltam que o objetivo do jogo é ajudar a estabelecer as bases para a compreensão da leitura, o que não implica em alfabetização formal. Não se trata, portanto, de uma ferramenta para alfabetizar, mas, sim, de um apoio para promover nas crianças os chamados precursores da aquisição da leitura e escrita. A ação não substitui a alfabetização formal, nem a necessidade de ensino explícito e sistemático nas escolas por parte dos professores.

"Nada substitui o professor, não é essa a ideia. As evidências mostram, inclusive, que o jogo funciona melhor quando o professor integra a atividade", diz Buchweitz.

A educação em ambientes gameficados e, num aspecto mais geral, o uso de ferramentas digitais na Educação Infantil, não são previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). De acordo com o documento, o ensino e a aprendizagem nessa fase devem se dar por meio do que chama de "campos de experiências", através das interações e brincadeiras presenciais. A base incentiva, contudo, o uso de tecnologias dessa natureza a partir do ensino fundamental.

"Nesse contexto de pandemia, nos parece que algumas atividades de ensino remoto podem fazer sentido desde que estejam mediadas por um adulto", diz Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. "E, por isso, o importante é a escola manter o contato com as famílias e ajudá-las a organizarem uma rotina, propondo algumas atividades que os pais farão junto com a criança. São atividades emergenciais para um momento em que estamos vivendo. É fundamental que sejam lúdicas, relacionais e coloquem a criança em uma posição ativa".

Como já mencionado, o Graphogame resulta, originalmente, de um estudo longitudinal iniciado em 1992, na Finlândia, país que investiu esforços para identificar padrões de desenvolvimento da leitura e fatores preditivos da dislexia, a fim de intervir para a prevenção do distúrbio de aprendizagem e das dificuldades na aquisição de leitura, num aspecto geral. Para isso, os cientistas acompanharam um grupo de crianças desde o seu nascimento ao início da idade adulta.

Um dos principais achados do estudo foi consagrado, mais tarde, por outros documentos como o do conhecido National Reading Panel (NRP), dos EUA, em 2000: uma das principais chaves para se alcançar a alfabetização é aprender a chamada relação grafema-fonemas - como previsto na atual Política Nacional de Alfabetização (PNA). Crianças com problemas para a aquisição de leitura, por exemplo, demonstram dificuldades para diferenciar e manipular os sons da fala e, consequentemente, para conectar esses sons às suas letras correspondentes.

As evidências levaram os pesquisadores a desenvolver o recurso educacional Graphogame, a fim de minimizar o risco de crianças desenvolverem dificuldades persistentes na alfabetização e ajudá-las a alcançar proficiência de leitura. Mais tarde, o modelo virou, propriamente, um jogo virtual, e acabou sendo traduzido para diversas línguas.

Teste experimental na Zâmbia, Quênia, Tanzânia e Namíbia

Zâmbia, Quênia, Tanzânia e Namíbia, países com indicadores de alfabetização "semelhantes" aos do Brasil, participaram de testes-piloto para se verificar a efetividade do jogo como um apoio à aquisição da leitura. Na Namíbia, por exemplo, onde 40% dos alunos do 5º ano conseguem ler apenas nos níveis de pré-leitura, leitura emergente ou leitura básica, e na Zâmbia, local no qual até um terço das crianças que concluem a escola primária não conseguem ler uma frase. As duas nações também enfrentam dificuldades com a formação de professores.

Para a comunidade científica, o jogo se tornou inclusive espécie de "laboratório de pesquisas", uma vez que o app gera uma base de dados que pode orientar intervenções e políticas públicas voltadas à educação infantil.

Como resultado, o uso do game produziu melhorias significativas na performance dos alunos, com desempenhos ainda mais proeminentes quando estudantes e professores/ou um adulto jogaram ao mesmo tempo.

Impacto dos dispositivos digitais

Apesar das evidências que apontam para a eficácia de ferramentas digitais na educação, como metanálises que indicam que jogos virtuais são mais eficazes do que métodos de instrução convencionais, em termos de aprendizagem, por exemplo, há evidências e especialistas que apontam no sentido contrário. Na realidade, restam lacunas a respeito da real eficácia do uso de games para ajudar na alfabetização.

"Nos primeiros anos de vida, a criança aprende experiências significativas e concretas. Por isso, faz mais sentido termos uma visão mais ampla relacionada ao desenvolvimento. Fica muito difícil pensar em garantir isso com a criança na frente de uma tela, apenas recebendo estímulos e reagindo a eles", diz Beatriz Abuchaim. "As aprendizagens no início da vida precisam se basear em contextos interacionais e que façam sentido para a criança. Uma criança sozinha, em frente a tela, tem uma interação limitada. Nesse sentido, a linguagem verbal, a criatividade e o desenvolvimento cognitivo e socioemocional são prejudicados. Esse tipo de atividade raramente tem um caráter lúdico, no sentido de promover o desenvolvimento da criatividade e da imaginação".

"Além disso, nos preocupa bastante a exposição das crianças em frente às telas, que pode ser prejudicial inclusive para o desenvolvimento neurológico da criança. A própria Sociedade Brasileira de Pediatria não recomenda o uso de telas para crianças menores de dois anos e, após essa idade, o uso deve acontecer de forma controlada e limitada. É uma questão de usar esses recursos de uma maneira que faça sentido dentro do contexto ao qual a criança está inserida. A tecnologia avança cada vez mais e seus reflexos se estendem inclusive na educação. Acredito que se a atividade em telas for dosada, promover uma interação entre o adulto e a criança e se estimular o desenvolvimento integral, ela pode ser utilizada. Mas é ideal que a qualidade seja educacional e que não coloque a criança em uma situação passiva".

Beatriz Abuchaim.

Michel Desmurget, diretor de pesquisa no Instituto Nacional da Saúde e Pesquisa Médica da França, opina que o excesso do uso dessas tecnologias poderia até mesmo "afetar o QI e os principais alicerces da inteligência, como a linguagem, a concentração e a memória". Em última análise, segundo ele, isso poderia levar a uma queda significativa no desempenho acadêmico dos indivíduos. Seu posicionamento é visto com ressalvas por muitos cientistas, e suas pesquisas não são conclusivas, à medida em que não há certeza de relação causal entre aumento de uso de tela e diminuição do QI.

"Não quero desvalorizar a tecnologia, principalmente depois do que ela nos mostrou durante a crise sanitária. Mas não é panaceia. Ela pode, sim, ajudar a entregar o conteúdo de forma mais fácil e lúdica às crianças. Mas tudo tem limites", diz Augusto Buchweitz. "Se o professor segue as evidências, e utiliza giz de cera, funciona igualmente".

O especialista ressalta que o jogo trata apenas da chamada decodificação, um dos aspectos da alfabetização. Para que a ferramenta funcione, de fato, como um apoio, é preciso que profissionais da educação se aproveitem do game e integrem atividades que estimulem a leitura.

Em Taiwan e na China, o uso excessivo de telas chega a ser considerado uma forma de abuso infantil, para a qual existem leis que multam pais que expõem crianças menores de 24 meses a aplicativos ou que não limitam o tempo de uso dessas ferramentas para pessoas entre 2 e 18 anos.

Há também percalços a serem enfrentados no uso das TICs ainda no século 21: muitos professores relutam em integrá-las em sua prática diária, até mesmo em países desenvolvidos. Outra dificuldade é que, em muitos países, os recursos digitais podem ser limitados por diversos motivos, tais como falta de dispositivos móveis, eletricidade, conexões de internet.

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