Sancionada em agosto de 2012, a lei que prevê cotas para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio deverá ser revista em 2022, quando completará dez anos de vigência. Com a revisão se aproximando, o debate sobre o tema tem se intensificado: enquanto em Brasília há projetos de lei nas duas casas legislativas que propõem alterações ou continuidade da medida, movimentos sociais se articulam para tornar a ação afirmativa permanente.
A Lei nº 12.711/2012 – conhecida como “Lei de Cotas” – determina que todas as 69 universidades federais e os 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia reservem no mínimo 50% das vagas de cada curso para estudantes que concluíram o ensino médio em escolas públicas. Metade dessas vagas reservadas deve ser destinada a estudantes de famílias com renda mensal igual ou menor que 1,5 salário mínimo per capita. Dentro da quantidade total destinada aos cotistas, as vagas devem ser preenchidas por estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência em proporção no mínimo igual à proporção respectiva desses grupos no estado em que a instituição está localizada a partir do censo mais atualizado do IBGE.
Críticas ao formato atual da Lei de Cotas
A lei em questão tem sido motivo de grandes discussões desde a época de sua votação e aprovação nas duas casas legislativas federais até hoje. O principal argumento contrário à atual legislação é que, como para metade dos cotistas o fator “renda” não é considerado, pessoas negras, indígenas ou com deficiência que figuram em classes econômicas mais altas podem ingressar nas instituições de ensino por meio das cotas, deixando de fora pessoas socioeconomicamente mais vulneráveis.
Peter Fry, doutor em Antropologia Social, avalia que a forma atual da lei não resolve o principal problema da população brasileira pobre no acesso à universidade, que é a má qualidade da educação básica. “Para resolver o problema das desigualdades no Brasil é preciso investir massivamente na educação nos lugares mais pobres do Brasil, e automaticamente passa-se a contemplar as pessoas negras que, por razões históricas, figuram entre os mais pobres”.
Fry destaca que muitos estudantes que não tiveram acesso a um bom ensino não ingressarão nas universidades nem por meio da Lei de Cotas, uma vez que há provas seletivas para o acesso. “As cotas poderiam perfeitamente ser apenas sociais, e por razões demográficas favoreceria muito mais as pessoas negras”, aponta.
Ricardo da Costa, doutor de História da Arte e professor na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), também é contrário às cotas raciais. “O ambiente cultural propiciador da lei teve como modelo histórico a sociedade norte-americana, muito mais segregacionista que a nossa. Sinto dificuldade em aplicar critérios raciais em nossa sociedade, miscigenada desde as suas origens”, afirma.
Mais especificamente quanto ao aspecto racial da Lei de Cotas, Fry explica que o debate sobre a medida, que poderia provocar maiores conquistas justamente para aqueles em condições de maior pobreza – na qual faz parte a população negra –, é bastante complexo por que o assunto virou uma espécie de “prova de correção”. “Aqui no Brasil, infelizmente, quem é contra a forma como está a medida acaba sendo tachado de racista. As pessoas não têm coragem de manifestar argumentos contrários por medo de serem rotuladas dessa forma”, afirma o antropólogo. “O racismo é uma das piores coisas que existem na humanidade, e infelizmente há racismo no Brasil. Minha crítica às cotas raciais é exatamente por isso”.
Ele aponta, entretanto, que o programa de cotas provavelmente será renovado em 2022: “Há um estudo do economista norte-americano Thomas Sowell que constata que essas políticas são muito difíceis de serem removidas. Há raras exceções”.
Defesa das cotas raciais
Do outro lado do debate, defende-se que a lei de cotas universitárias, especialmente quando relacionada a negros e indígenas, tem como objetivo reparar injustiças históricas que ao longo dos anos favoreceu pessoas brancas.
Gina Vieira Ponte, professora da educação básica engajada em causas sociais, afirma que a realidade de muitos jovens negros é acreditar que a universidade não é um local ao qual eles possam ter acesso, então o impacto das cotas, quando se referem ao aspecto racial, seria pedagógico. “Quando o estudante negro sabe que tem cotas reservadas para ele, é uma forma de entender que ali também é o seu lugar. A regra é que pessoas negras são a maioria em situação de pobreza. Na pandemia podemos ver que o número de pessoas negras e indígenas que não conseguem acessar o ensino remoto é muito mais significativa”, cita a docente. “Não são dez anos de vigência da lei de cotas que vão corrigir 348 anos de tráfico e tortura de pessoas negras no Brasil”.
Ela cita também o fator de inclusão social, por meio da lei, para todos os grupos socialmente vulneráveis. “A universidade pública parte do princípio de que quem entra lá vai ficar exclusivamente estudando, que a família vai garantir seu sustento e que não vai ser preciso que ele trabalhe. Mas essa não é a realidade dos alunos pobres. Existem universidades que são feitas para excluir, e com as cotas começam a olhar para isso”, opina Gina. “Se estamos falando de universidade pública, não é justo colocar o trabalhador para pagar impostos que bancam as universidades e interditar o acesso dos seus filhos a essas instituições de ensino”.
André Lázaro, diretor de Políticas Públicas da Fundação Santillana e integrante do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), avalia que a lei deve ser renovada em 2022 para um período maior do que os dez anos iniciais, com a inclusão de avaliações regulares por meio de dados quantitativos e aspectos qualitativos. “Até a legislação, não havia praticamente diversidade nas universidades públicas, apenas a classe média branca tinha acesso aos bancos e laboratórios das melhores universidades brasileiras. Não seria razoável voltar a esse padrão”, declara.
Quanto aos critérios que devem ser levados em conta para identificar se é necessário ou não prorrogar ou alterar a lei, ele explica que é preciso considerar os objetivos da lei e, por meio de processos de avaliação, mensurar se esses objetivos foram atingidos, se são sustentáveis e se é necessário ampliar o alcance da legislação para garantir seus resultados a médio e longo prazos. “É importante considerar ingresso na instituição de ensino, permanência, fluxo estudantil e ingresso no mercado de trabalho ou prosseguimento na vida acadêmica. Não basta apenas registrar quantidades, mas avaliar a qualidade do percurso e a posterior inclusão no mercado de trabalho, de acordo com a formação profissional dos estudantes”, salienta.
Questionado pela reportagem sobre possível restrição do programa a pessoas que não se enquadram como negras, indígenas e com deficiência, mas vivem em condição de pobreza, Lázaro disse que essa hipótese parece não ser motivo de discussão por nenhum grupo ou associação, porém destaca o critério inicial da Lei de Cotas que define como sujeitos de direito o fator de ter estudado em escola pública.
Um estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgado em 2019, concluiu que a Lei de Cotas aumentou em 39% a presença de estudantes pretos, pardos e indígenas vindos de escolas públicas nas instituições federais de ensino superior nos quatro primeiros anos de aplicação do programa. Sem contar o aspecto racial, o estudo apontou que o ingresso de estudantes que concluíram o ensino médio na rede pública e cuja renda familiar per capita não ultrapassava 1,5 salário mínimo teve aumento de 14% no período, passando de 48,2% em 2012 a 54,8% em 2016.
Projetos de lei no Congresso Nacional
Com a aproximação da revisão da lei de cotas universitárias, diferentes propostas legislativas têm sido apresentadas no Congresso Nacional. Em março de 2019, a deputada Professora Dayane Pimentel (PSL-BA) apresentou o Projeto de Lei (PL) 1531, que altera a legislação de 2012 eliminando o critério racial da reserva de vagas, porém mantendo os benefícios para pessoas em vulnerabilidade social e para pessoas com deficiência. O objetivo da proposta é tornar o programa de cotas exclusivo para pessoas pobres independentemente de sua raça, evitando que estudantes que tenham melhores condições econômicas se aproveitem da medida.
Em outubro do mesmo ano, o deputado Dr. Jaziel (PL/CE) apresentou o PL 5303, que também propõe a retirada das cotas raciais da lei de 2012 – a proposta foi apensada ao projeto de lei da deputada Dayane Pimentel.
Por outro lado, na mesma casa legislativa tramita o PL 5384, apresentado em dezembro de 2020 pela deputada Maria do Rosário (PT/RS) junto com mais sete parlamentares. A proposição torna permanente a política de cotas em universidades. “A Lei 12.711/2012, quando aprovada, estabeleceu sua revisão após dez anos de sua publicação. Apesar do sucesso apresentado pela lei em tornar diverso e plural o ingresso nas instituições federais de ensino, ainda não é chegado o momento de revisar-se a lei no período inicialmente previsto. Assim, considerando as nefastas consequências da escravidão, do racismo estrutural em nosso país, é preciso tornar permanente a reserva de vagas nas instituições mencionadas”, declaram os parlamentares na justificativa do PL.
No Senado, o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou, em agosto de 2020, o PL 4656, que prevê que, em vez da revisão única prevista para 2022, a lei de Cotas seja reavaliada permanentemente a cada dez anos. Caso o preenchimento de vagas pelos grupos beneficiados seja menor do que a proporção desses grupos nos estados em pelo menos uma instituição de ensino, a lei é automaticamente prorrogada por mais dez anos em todo o país. Se, por outro lado, todas as universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio alcançarem a meta de proporção dos grupos beneficiados com a medida, a lei poderá ser suspensa a partir de cinco anos após essa constatação.
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