A possibilidade de pagar para estudar em uma universidade pública no Brasil movimentou o debate político na Câmara dos Deputados, nas redes sociais e nos movimentos estudantis. A PEC 206, que trata da cobrança de mensalidades no ensino superior público, estava marcada para ser votada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, na última terça-feira (24), mas a votação foi adiada pela ausência do relator, Kim Kataguiri (União-SP). O assunto deve ser colocado em votação somente após a realização de audiência pública, sem data definida.
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Prevista e garantida no artigo 206 da Constituição Federal, a "gratuidade do ensino público" só pode ser alterada por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). O primeiro passo da tramitação é ser aprovada na CCJ. Se passar pelo colegiado, será analisada em uma comissão especial e depois votada em dois turnos no plenário da Câmara dos Deputados. Se for aprovada, segue para o Senado.
Apresentada em 2019, pelo deputado federal General Peternelli (União-SP), a PEC 206 determina que as universidades públicas deverão cobrar mensalidades dos alunos, sendo a gratuidade mantida apenas para estudantes comprovadamente carentes. Os critérios serão definidos por comissão de avaliação da própria universidade, com base em valores mínimo e máximo estabelecidos pelo Ministério da Educação. Os recursos devem ser geridos para o próprio custeio das universidades.
Em resposta à Gazeta do Povo, o autor da PEC informou que decidiu apresentar essa proposta após uma observação do que ocorre no mundo. O parlamentar se baseou em um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo o qual de 29 países analisados, 20 cobravam mensalidades, entre os quais: Austrália; Canadá; Coreia do Sul; Espanha; Estados Unidos; França; Israel; Itália; Japão; e Reino Unido.
Outro estudo mencionado pelo deputado Peternelli foi o do Banco Mundial, de 2017, em que se afirma que a cobrança de mensalidade nas universidades públicas brasileiras seria uma forma de diminuir as desigualdades sociais no país.
"Em média, um estudante em universidades públicas no Brasil custa de duas a três vezes mais que estudantes em universidades privadas. Entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de aproximadamente R$ 12.600 e R$ 14.850, respectivamente. Em universidades federais, a média foi de R$ 40.900", destacou o deputado, com base no estudo do Banco Mundial.
Alguns críticos à PEC alegam que a proposta trará o risco de redução de investimento público nas universidades federais, além da falta de critérios específicos que determinem o público-alvo da cobrança. General Peternelli explicou que os critérios serão definidos futuramente pelo MEC e os reitores, e garantiu que a ideia da PEC 206 é justamente aumentar o recurso das universidades, facilitando o investimento.
"Uma opção para aumentar os recursos das universidades federais sem sobrecarregar o orçamento seria a introdução de tarifas escolares. Isso é justificável, pois o ensino superior oferece altos retornos individuais aos estudantes e, com base em dados atuais, o acesso privilegia fortemente estudantes de famílias mais ricas", argumentou o parlamentar.
Prós e Contras
Relator da PEC 206, Kim Kataguiri (União-SP) já adiantou o seu parecer favorável à proposta. Em decorrência das críticas e questionamentos nas suas redes sociais, ele apresentou uma nota oficial explicando alguns pontos polêmicos do projeto, especialmente sobre a possível privatização das universidades públicas.
“É falso que as universidades estariam sendo privatizadas. Quem não pode pagar, não paga, e o que é arrecadado com quem pode pagar, ainda pode ser revertido em auxílios e bolsas para quem não pode pagar”, explicou.
No Twitter, o deputado paulista reforçou que é necessário reverter a pirâmide do investimento na educação brasileira: “a chance de um aluno de família pobre entrar na Universidade Pública é de 2%. Já a chance de um aluno de família rica sobe para 40%. Dinheiro Público não é infinito e o foco da atuação do Estado tem que ser nos mais pobres.”, salientou.
Seguindo a mesma linha do relator sobre o fim da "gratuidade", o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG) disse que é um projeto bem-vindo e que se trata de um assunto comum nos países mais desenvolvidos do mundo.
"O atual modelo de financiamento das universidades públicas brasileiras, na prática, transfere renda de pobres para ricos. A PEC 206, que prevê a cobrança de mensalidade dos mais ricos, vai na direção correta, pois ajuda a inverter essa lógica, impedindo que famílias muito pobres tenham que pagar pelo ensino superior de famílias que teriam plenas condições de arcar com esse custo. Não há como ser contra isso", disse.
Mitraud informou que no momento está sendo discutido a constitucionalidade da proposta, mas que em uma comissão especial será possível debater e definir o modelo mais adequado à realidade brasileira, que, segundo ele, tem sido injusta com os estudantes brasileiros.
“Hoje, universidades públicas são pagas por toda a sociedade por meio de impostos. Grande parte dessa sociedade, porém, não consegue acessar essas universidades. Em geral, os mais pobres, que são justamente os que pagam proporcionalmente mais impostos no Brasil. Nos parece mais justo que aqueles que acessam universidades públicas contribuam para o seu custeio, desde que, é claro, tenham condições para isso”, afirmou.
Já para o deputado federal Idilvan Alencar (PDT-CE), a proposta não tem nada de positivo e nem vai resolver a questão do financiamento da universidade pública. "É mais uma pauta-bomba que cria mais uma barreira de acesso aos mais pobres que, além de passar no Enem, vão ter que ficar provando todo ano que é pobre", argumentou.
A deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) declarou ser contra a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, especialmente na forma como foi proposto. Mas disse ser necessário buscar uma solução para o financiamento do ensino superior. De acordo com a parlamentar, o projeto vai na contramão dos avanços recentes da educação e não deveria tomar como modelo o que é aplicado nos Estados Unidos.
"O perfil de quem faz faculdade pública vem mudando bastante, por conta do Sisu e da lei de cotas. Sei que essa proposta é inspirada no modelo americano, e os Estados Unidos estão enfrentando um problema gigantesco de endividamento da juventude, que estão enfrentando problemas para iniciar suas carreiras", ressaltou.
Como sugestão para solucionar o problema de financiamento, a deputada propõe olhar para o modelo australiano. Lá, após se formarem, os ex-alunos que atingem um patamar alto de renda pagam pelo curso.
"O que questiono não é a gratuidade, que segue sendo gratuito, mas sim quem está pagando essa conta? Precisamos definir e discutir formas mais efetivas e mais justas de definir quem paga, trazendo assim uma fonte de recursos que pode ser muito importante para valorização do ensino superior público", explicou.
Desigualdades
Na avaliação do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff (PT), Renato Janine, "cobrar pelo ensino superior público não resolveria os problemas". Em um artigo para o Jornal da Ciência, ele destacou que o público nas universidades mudou com a política de cotas, sendo em sua maioria de escolas públicas.
"Seria mais justo para a sociedade cobrar impostos de todos os que ganham mais, e não apenas daqueles que, ganhando mais, se eduquem. Porque a educação não deve ser entendida como um subsídio estatal para melhorar a renda dos educados, e sim como um investimento que a sociedade efetua para retornos importantes destinados a todos", escreveu o ex-ministro.
A estrategista de políticas públicas e diretora Executiva no Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (Ceiri), Daniela Alves, reforçou que a realidade de outros países que cobram mensalidades não pode servir de parâmetro para o Brasil.
"Não existe uma análise profunda da nossa realidade. Será que os outros países têm o mesmo nível de desigualdade do nosso país? Não dá para comparar com países que já solucionaram problemas que persistem no Brasil. Precisamos fazer um diagnóstico das universidades públicas e a partir disso desenhar soluções factíveis", salientou.
Outro ponto crítico da proposta, de acordo com Daniela, é a não definição de critérios básicos de como e de quem seria cobrado as mensalidades. "Falam nos ricos, mas é muito aberto, não dá indicações de absolutamente nada. Temos que saber quem pode pagar e quem não pode pagar. São termos que para a população em geral tem um grande impacto financeiro", disse.
Instabilidade
Do ponto de vista político e em um ano eleitoral, esse tipo de matéria poderia gerar instabilidade e criar um problema sem solução, na opinião do diretor da Associação Brasileira de Consultores Políticos e analista político Alexandre Bandeira.
"O que mais me preocupa é o timing que isso é colocado em pauta. Esse assunto precisa amadurecer, mas neste momento serve apenas em pautar um tema em ano eleitoral. Não é um assunto para ser resolvido, mas somente para ser anunciado. Não tem muito o que contribuir e vai ter uma discussão que não é necessária", disse.
Segundo Bandeira, a discussão da proposta nem deve vingar esse ano, já que os trabalhos legislativos não rendem durante o período de festas juninas e, em seguida, muitos parlamentares se direcionam aos estados para cuidar das eleições.
Audiência Pública
Em meio às polêmicas e contradições sobre a PEC, os deputados federais aprovaram na CCJ a realização de uma audiência pública para debater o assunto. Ainda não foi definida a data, mas alguns deputados já começaram a apresentar requerimentos para inclusão de nomes a serem ouvidos nessa audiência.
Os críticos à PEC querem ouvir estudantes, especialistas e estudiosos do ensino superior no Brasil e no mundo, reitores, professores, pessoal responsável pela gestão das universidades e o Ministério da Educação.
O autor da proposta, General Peternelli, já adiantou à Gazeta do Povo que pretende convidar o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Paulo Meyer, autor do artigo “O estudante de hoje financiado pelo profissional do amanhã: proposta de um sistema nacional de financiamento estudantil com pagamentos vinculados à renda futura – funcionamento e fonte de recursos”; o professor do Insper Ricardo Paes; a ex-diretora do Banco Mundial Cláudia Costin; e a representante do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), que realizou visita técnica na Austrália.
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