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Crime organizado
Operação da Polícia Federal em São Borja (RS) buscou combater a interferência de facção criminosa no processo eleitoral.| Foto: PF/Divulgação

Coação de eleitores, ameaças, extorsões e até impedimento de atos políticos de candidatos opositores: um outro lado da campanha eleitoral foi exposto no pleito de 2024, com o crime organizado tentando ditar regras e interferir nos votos em diversas regiões. Foi o que aconteceu em Santa Quitéria, no interior do Ceará: investigações evidenciaram o plano de uma facção para influenciar no resultado do pleito.

“Não se descarta a possibilidade de (o suspeito) atentar contra a vida de um candidato. Só que houve um trabalho de inteligência e ele foi preso”, afirma o procurador de Justiça do Ministério Público do Ceará Emmanuel Girão. A detenção ocorreu em outubro - o homem seria do Comando Vermelho, facção criminosa com base no Rio de Janeiro, e estaria agindo desde agosto para que o candidato apoiado pelo grupo vencesse o pleito.

O plano foi desmantelado por uma operação integrada envolvendo forças de segurança pública, promotores eleitorais e o Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), do Ministério Público. “Houve um trabalho de cooperação, um trabalho de inteligência”, diz Girão.

Com 40 mil habitantes, Santa Quitéria foi uma das cidades brasileiras em que o crime organizado agiu de forma ativa para tentar interferir no resultado das eleições municipais. Segundo o Ministério Público do Ceará, há investigações sobre a influência de facções na região da capital Fortaleza, em Sobral, Canindé e Choró. No estado, diversas ações integradas foram desencadeadas para apurar e barrar ações de facções, como ocorreu em Santa Quitéria. 

A Organização dos Estados Americanos (OEA) alertou, em relatório preliminar publicado após o primeiro turno das eleições, para “a preocupação crescente” de vários atores sobre o risco de o crime organizado entrar no âmbito político. “Eles manifestaram o receio da ação de grupos criminosos de impor restrições de mobilidade nas áreas sob seu controle, afetando as candidaturas locais, bem como exercer coerção sobre os eleitores de algumas comunidades para influenciar o voto”, diz o texto de 9 de outubro, que foi elaborado por 15 observadores de nove nacionalidades que trabalharam durante a campanha eleitoral para monitorar as eleições brasileiras.

Em Cabo Frio, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, pessoas que trabalharam em campanhas relataram que foram proibidas de entrar em algumas localidades por facções. “O pessoal do tráfico vinha falar que não podia (entrar), que eles tinham um candidato deles”, disse um dos entrevistados que teve a identidade preservada. Houve relatos de situações semelhantes nas localidades Jardim Esperança, Tangará, Parque Eldorado e Favela do Lixo. Na cidade do Rio de Janeiro, há casos parecidos na zona oeste.

OEA alertou para a preocupação crescente sobre o risco de o crime organizado entrar no âmbito político.

Em março, Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e o Tribunal Regional Eleitoral do estado (TRE-RJ) se reuniram para traçar ações estratégicas na tentativa de coibir a atuação do crime organizado nos processos eleitorais, assim como para criar mecanismos para que esses grupos não conseguissem se infiltrar nas Câmaras e prefeituras. Procurados, MP-RJ  afirmou que não tinha dados sobre tentativas de interferência do crime organizado no pleito, e o TRE-RJ orientou buscar o MP.

Em São Paulo, órgãos de inteligência informaram ao Tribunal Regional Eleitoral que 70 pessoas que concorriam às eleições de 2024 no estado eram suspeitas de ligação com o crime organizado. Destas 70, 10 pessoas foram eleitas ao cargo de vereador e duas ao cargo de prefeito.

“Não temos mais detalhes porque trata-se de informação sigilosa. Os dados serão encaminhados ao Ministério Público para as providências cabíveis, por exemplo, averiguar o cabimento de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) para apuração de gastos ilícitos ou abuso de poder econômico, entre outros”, diz o TRE-SP em nota.

O relatório da OEA demonstra, ainda, “preocupação com a entrada de fundos ilícitos, especialmente provenientes do tráfico de drogas nas eleições”. A cientista política Marjorie Marona, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que uma das formas de o crime organizado se infiltrar na política é com o lançamento de candidaturas de pessoas laranjas que estejam ligadas a esses grupos. “Esses relatos acabaram trazendo para um primeiro plano uma preocupação com a atuação do crime organizado nas eleições”, afirma.

Segundo ela, não há estudo sistematizado sobre as formas de atuação do crime organizado nas eleições. “Tudo isso aponta para a necessidade de a gente refletir sobre a questão e fazer um mapeamento mais consistente das diversas formas de atuação do crime organizado nas eleições municipais para poder gerar ferramentas eficazes de controle sobre isso”.

A atuação de organizações criminosas como patrocinadoras de candidatos é outro ponto de preocupação, alerta o professor Pontes Filho, da faculdade de Direito da Universidade do Amazonas (Ufam). Ele chama a atenção para o fato de as eleições envolverem campanhas milionárias que acabam atraindo também facções.

Pontes Filho diz que essas ações do crime organizado “prejudicam, sem dúvida, o princípio da democracia baseada em eleições livres”, já que “violam princípios fundamentais da liberdade política e da liberdade física”.

TSE adotou medidas inéditas na tentativa de barrar avanço do crime organizado

Em setembro, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, disse que a tentativa do crime organizado de influenciar e se infiltrar nas eleições municipais é “bastante grave” e “não pode ser subestimada”, em entrevista ao jornal O Globo. A preocupação levou o TSE a criar um núcleo de especialistas do Ministério Público e da Polícia Federal para verificar, a partir dos pedidos de registro de candidatura, se havia pessoas envolvidas em processos relacionados a organizações criminosas. A medida é inédita.

Cármen Lúcia também determinou que houvesse um juiz em todos os municípios brasileiros no dia da eleição. “Essa estratégia foi implementada para que os eleitores se sintam seguros e protegidos, tanto física quanto legalmente, em todo o território nacional”, afirmou.

Cármen Lúcia
Ministra Cármen Lúcia (ao centro), presidente do TSE, na apresentação de balanço do 2º turno das eleições 2024.| Luiz Roberto/TSE

No Ceará, por exemplo, houve reforço de promotores eleitorais durante as eleições, com ampliação da presença dos servidores para todos os 184 municípios do estado - antes, os agentes estavam em 88 cidades. “Onde havia uma demanda maior por conta das facções criminosas, nós conseguimos colocar um auxiliar, além do promotor titular. Então esse auxílio gerou algumas operações”, explica o procurador Girão. 

Os promotores eleitorais de todo o país receberam, no início de setembro, orientações da Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) e do Grupo Executivo Nacional da Função Eleitoral do (Genafe) para combater a influência do crime organizado nas eleições. O objetivo da orientação era “identificar possíveis candidaturas  que tenham elos com a criminalidade, bem como o financiamento de campanhas e partidos com vinculações a milícias ou facções criminosas”.

O documento também orienta que os procuradores utilizem dados dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF), elaborados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), para “identificar eventuais ilícitos, respeitando a independência funcional dos membros do Ministério Público para atuar nas investigações”.

A reportagem da Gazeta do Povo solicitou dados sobre casos de influência ou suspeita de influência do crime organizado no pleito, mas a Procuradora-Geral da República (PGR) informou que não possui levantamento sobre isso já que a responsabilidade de fiscalizar as eleições municipais é dos Ministérios Públicos estaduais. Mesmo assim, o órgão disse que “há algumas investigações sob sigilo em andamento”.

A Polícia Federal (PF) também intensificou ações no período eleitoral. Entre as maiores preocupações da PF estava “a participação do crime organizado no apoio a candidatos”. Entre 1º janeiro e 27 de outubro, ações de combate a crimes eleitorais apreenderam R$ 55 milhões em bens.

Além disso, foram instaurados 2.577 inquéritos policiais. A Gazeta do Povo solicitou à PF o número de operações com o objetivo de desarticular ações de grupos criminosos que tentavam interferir no pleito, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Em Santana do Livramento (RS), por exemplo, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão na residência e no comitê de um candidato investigado.

As ações ocorreram  em 29 de setembro. Segundo a investigação, o candidato a vereador praticava corrupção eleitoral através de doações a moradores em troca de votos. “Além disso, as informações davam conta que o referido candidato seria financiado por integrantes do crime organizado, sobretudo com recursos provenientes do contrabando. Após diligências preliminares, foi possível identificar a atuação ativa e permanente de indivíduos com vasto histórico criminal na campanha do candidato investigado, inclusive por meio de doações em dinheiro”, diz a PF.

Também no Rio Grande do Sul, a Polícia Federal, com apoio da Brigada Militar e da Polícia Civil, deflagro, em 3 de outubro a operação "Integridade eleitoral", com o objetivo de combater a interferência de facção criminosa no processo eleitoral de São Borja. As apurações tiveram início a partir do compartilhamento de informações entre Polícia Federal, Polícia Civil, Brigada Militar e Ministério Público Eleitoral, que identificaram possível apoio pessoal, material e financeiro de grupo criminoso atuante na região a um candidato das eleições. Os suspeitos teriam cooptado eleitores por meio da distribuição de “vantagens indevidas e a não declaração de gastos eleitorais”. 

Outro caso de suspeita de envolvimento do crime organizado no pleito ocorreu em Parintins (AM), onde a PF deflagrou a operação "Tupinambarana liberta" em 3 de outubro. A ação buscava "desarticular associação entre membros de facção criminosa e agentes públicos, os quais entraram em conluio visando a prática de crimes eleitorais em prol de uma candidatura na cidade de Parintins".

Polícia Federal deflagrou diversas operações para combater ações do crime organizado nas eleições 2024.
Polícia Federal deflagrou diversas operações para combater ações do crime organizado nas eleições 2024.| PF/Divulgação

De acordo com a investigação, foram utilizadas estruturas de estado, inclusive, de forças policiais para benefício de uma chapa que disputava a prefeitura de Parintins. A investigação iniciou após o Ministério Público Eleitoral apresentar notícia de fato à Polícia Federal, em setembro, sobre a situação da cidade. Durante as investigações, surgiram indícios de ameaças de líderes comunitários ligados a uma facção criminosa nacional de tráfico de drogas, proibindo o acesso de candidatos à prefeitura a determinados bairros.

“Aliado a isso, foram colhidos indícios acerca da possível inércia de agentes públicos para coibir tais ameaças em prol de uma candidatura à prefeitura de Parintins. As ações coordenadas do grupo criminoso teriam promovido a espionagem de pessoas ligadas a um grupo político do município e também monitorado o deslocamento de policiais com a finalidade de frustrar a atuação da Polícia Federal”, explica o órgão de segurança pública.

Como impedir que o crime organizado se infiltre na política?

A cientista política Marjorie Marona, professora da UFMG, aponta para dois tipos de ações que podem ser adotadas para impedir a aproximação do crime organizado com a política: as medidas repressivas e as de prevenção. “Você tem algumas ações que visam a coibir a infiltração do crime organizado nas eleições, lançando mão de uma legislação que se baseie na reputação dos candidatos", diz ela.

A ideia, conforme explicação de Marona, é que se tenha mecanismos de controle e fiscalização sobre as candidaturas, levantando a reputação dos candidatos. "Então você afasta da possibilidade de concorrer nas eleições aqueles candidatos que têm, entre aspas, uma má reputação, no sentido de haver fortes indícios, provas robustas ou condenações, que indiquem a ligação desses candidatos com a criminalidade”, complementa.

Outra forma são ações de prevenção e de controle no combate à infiltração do crime organizado nas eleições. “É você ter um sistema robusto de fiscalização e controle dos fluxos de financiamento das candidaturas. O bom e velho follow the money (siga o dinheiro), e descobrir, controlar e acompanhar processos de financiamento de dinheiro para dar suporte às candidaturas”.

O Brasil pode avançar nessas duas frentes, de acordo com a professora. Ela destaca que o país tem “um sistema bem robusto de controle das candidaturas, orientado por esse critério reputacional, que é a Lei da Ficha Limpa, que de fato trouxe um conjunto de critérios bastante amplos para coibir a entrada desses candidatos com má reputação na política”. Marona diz que, do ponto de vista da fiscalização, o Brasil tem melhorado e que, com o desenvolvimento da tecnologia, o país tem tido controle mais efetivo de todo o sistema de financiamento de campanha. 

A cientista política ressalta a relevância dessas iniciativas de combate à infiltração do crime organizado nas eleições serem desenvolvidas a partir de reformas legislativas, “que sejam embasadas no amplo debate e que passem por mudanças na legislação”. Para ela, o poder Judiciário pode ser um instrumento de pressão para as mudanças, mas o desenvolvimento dessas iniciativas deveria vir do Legislativo e da sociedade organizada. 

Violência política nas eleições

O relatório preliminar da Organização dos Estados Americanos, divulgado em 9 de outubro após o primeiro turno, ressaltou também o aumento da violência política no pleito municipal. De  1º de janeiro a 1º de outubro, organizações acadêmicas e da sociedade civil registraram 469 atos de violência contra políticos, “o que representa um aumento de 58,9% em relação aos 295 eventos registrados no mesmo período em 2020”, diz o texto.

Enquanto nas eleições municipais de quatro anos atrás houve um caso de violência política a cada sete dias, neste pleito foi registrado um incidente a cada 1,5 dia. Durante o processo eleitoral - excluindo-se a campanha de segundo turno, 228 casos de violência contra candidatos foram registrados em 24 das 27 unidades da federação. Apenas Tocantins, Rondônia e Distrito Federal de Brasília não contabilizaram incidentes. Os atos violentos mais comuns contra candidatos foram ameaças (25%), seguidas de agressões físicas (23,7%). 

Candidato à prefeitura de Taboão da Serra José Aprígio da Silva foi baleado em 18 de outubro.
Candidato à prefeitura de Taboão da Serra José Aprígio da Silva foi baleado em 18 de outubro.| Ian de Freitas/Divulgação PMTS

Entre agosto e setembro, 12 candidatos foram assassinados, diz o relatório: 10 disputavam a prefeitura e dois, vagas na Câmara de Vereadores. Entre as vítimas, está João Fernandes Teixeira Filho, conhecido como Joãozinho Fernandes, candidato a vereador pelo Avante no município de Nova Iguaçu (RJ). Ele tinha 48 anos e foi assassinado a tiros, no bairro Cacuia, na Baixada Fluminense, em 24 de setembro. 

O país registrou também tentativas de assassinatos de candidatos. A 13 dias do primeiro turno, realizado em 6 de outubro, a candidata à prefeitura de Guarujá (SP) Thaís Margarido (União Brasil) sofreu um ataque a tiros ao retornar de um compromisso de campanha. Ela estava em um carro, com uma assessora e duas crianças. Cinco balas atingiram o veículo - ninguém se feriu. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil como tentativa de assassinato.

“A Polícia Civil investiga uma tentativa de homicídio contra uma mulher de 46 anos, ocorrido na noite de domingo (22) no bairro Santa Cruz dos Navegantes, no Guarujá. Na ocasião, a vítima estava em seu veículo com uma mulher de 53 anos e duas crianças de 8 e 10 anos, quando o carro foi atingido por diversos disparos de arma de fogo. Ninguém ficou ferido”, diz nota divulgada pela polícia.

O relatório da OEA só contabiliza casos ocorridos até 1º de outubro - no entanto, na campanha de segundo turno houve novos atos de violência contra políticos. Um dos casos foi a tentativa de homicídio de José Aprígio (Podemos), de 72 anos, então candidato à reeleição de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. O prefeito foi baleado com um tiro de fuzil em 18 de outubro e chegou a ser operado para retirar fragmentos da bala que ficou alojada no ombro esquerdo.

Aprígio recebeu alta às vésperas do segundo turno, realizado no último dia 27. Ele foi derrotado no pleito por Daniel Bogalho (União Brasil). A Polícia Civil não descarta "nenhuma hipótese" para a motivação da tentativa de assassinato.

Após o ataque a tiros contra Aprígio, os candidatos do Podemos às prefeituras do Guarujá (SP), Farid Madi, e de São Bernardo do Campo (SP), Marcelo Lima, pediram à Justiça Eleitoral reforço de segurança. Madi fez o pedido após o Centro de Inteligência da Polícia Militar de São Paulo levar ao conhecimento do Ministério Público do Estado suspeitas de envolvimento de vereadores e agentes públicos com o Primeiro Comando da Capital (PCC). Já Lima solicitou à Justiça Eleitoral e ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) reforço de segurança para a candidatura dele e para a do adversário na disputa, Alex Manente (Cidadania).

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