Resumo desta reportagem:
- Energia nuclear quer mostrar seu valor: imagem negativa contrasta com benefícios para a humanidade, incluindo descarbonização.
- Diversas aplicações da tecnologia nuclear: contribuições na medicina, diagnóstico e segurança alimentar frequentemente ignoradas.
- Mudando a percepção: informação é chave para superar tabus e compreender o potencial positivo da energia nuclear.
- O papel da energia nuclear no futuro: aumento planejado de participação na matriz energética global e brasileira para enfrentar desafios climáticos e energéticos.
Quando se fala em energia nuclear, as primeiras imagens que vêm à cabeça não são agradáveis: nuvem-cogumelo da bomba atômica, máscaras antirradiação de Chernobyl, usina de Fukushima abalada pelo maremoto no Japão e a morte de quatro pessoas pelo contato com Césio-137 num ferro-velho de Goiânia, em 1987.
Esse legado de más recordações, contudo, não faria jus ao serviço prestado pela energia nuclear para a humanidade. “A energia nuclear está demonstrando hoje que é a única energia capaz de salvar o planeta. É a que tem a mais alta densidade, a única que pode acompanhar o crescimento do Brasil e do mundo, assegurando que se atinjam os compromissos de descarbonização da Cop-27 e da ONU, e que não haja o aquecimento de 4º C do globo”, afirma João da Silva Gonçalves, superintendente de engenharia de combustível da INB (Indústrias Nucleares do Brasil), empresa pública da União que atua na mineração e enriquecimento de urânio.
Ao conversar com uma plateia de engenheiros na 78.ª Semana Oficial de Engenharia e Agronomia (Soea), realizada em Gramado (RS) na semana que passou, Gonçalves enfatizou também a segurança da tecnologia atômica: “A energia nuclear, assim como a aviação e a indústria aeroespacial, deram origem a todos os sistemas modernos de segurança. Não pode ter falha. A taxa de falha tem de tender a zero”.
A hora e a vez da energia nuclear estariam chegando em função da resolução dos países de cortar as emissões de gases de efeito estufa, ao mesmo tempo em que essa missão fica cada vez mais complexa devido à guerra da Ucrânia, que colocou em xeque a dependência europeia do petróleo e gás russos. A Suécia acaba de anunciar a construção de dez novos reatores nos próximos 20 anos, o que deverá dobrar a produção de energia nuclear do país, que hoje já é de 30% da demanda total.
Confira a entrevista com o engenheiro químico João da Silva Gonçalves à Gazeta do Povo:
Fonte nuclear poderia descarbonizar o planeta
A reputação da energia nuclear não é boa. Tem como mudar essa chave?
Tem como mudar sim, desde que a gente informe as pessoas do que é a energia nuclear, como ela está presente em suas vidas, o que ela pode fazer pelo planeta e pelas sociedades. Todas as cadeias de cientistas do mundo estão dizendo que, hoje, somente a fonte nuclear tem essa condição de descarbonizar o planeta e evitar o efeito estufa. Sem falar das outras aplicações, na medicina, na irradiação de alimentos, na agricultura. São várias técnicas de detecção que a população já utiliza, mas não sabe que por trás daquilo está a energia nuclear.
Pode exemplificar?
Quando você vai fazer uma ressonância nuclear magnética, na realidade está fazendo uma irradiação, usando uma energia para obter uma imagem e ajudar no diagnóstico preciso. Uma mamografia é feita assim. O Pet-Scan (exame de diagnóstico por imagem), em que com aceleração de prótons você pode verificar seu estado dinâmico, olhar seus órgãos e verificar o que está acontecendo. A pessoa olha aquilo e acha que é a medicina, mas esquece que é a tecnologia nuclear que está por trás daquele fenômeno, daquele aparelho que está ajudando a salvar a vida dele.
O problema foi o início, que começou com uma bomba?
É um tabu, porque infelizmente a primeira imagem, o primeiro uso da tecnologia nuclear foi para um artefato, uma bomba, num esforço de guerra. E a partir daí as pessoas temeram. Outra coisa é o conceito de lixo atômico. Não existe lixo atômico, existe o rejeito radioativo que é cuidado. As únicas áreas que cuidam de seus rejeitos são a área nuclear e a área da aviação. Lixo pode ser descartado, sem controle, mas rejeito radioativo não. Tem que ser cuidado, inclusive por organismos nacionais e internacionais. Por isso, não é correto falar em lixo atômico.
Nos últimos 20 anos, enquanto outras fontes como eólica e solar aumentaram muito a participação na matriz energética brasileira, a energia nuclear se manteve estacionada ao redor de 1%. Isso vai mudar?
Vai mudar. O plano decenal já indicou mais uma central nuclear para o país. O plano plurianual até 2050 prevê 8 a 10 GW de fonte nuclear, o que significa pelo menos de oito a dez reatores nucleares para melhorar a nossa matriz. Outros países, como o Japão, por exemplo, voltaram com a energia nuclear. A Alemanha, que tinha desligado seus reatores, e importa energia nuclear da França, está repensando. A Polônia, que nunca tinha pensado nessa fonte, já está com o reator nuclear. Finlândia, Hungria, Arábia Saudita, todos já estão migrando pra fonte nuclear, porque não há outra alternativa para atender aos compromissos de descarbonização.
O senhor fala que o acidente nuclear de Fukushima foi muito distorcido no noticiário, como se tivesse ocorrido um apocalipse. O que de fato aconteceu?
Fukushima tem vários equívocos da mídia. Primeiro, houve um dos maiores terremotos já registrados, que causou 30 minutos depois um dos maiores maremotos já vistos. As estruturas de reatores nucleares resistiram aos impactos de duas das maiores forças da natureza.
As implosões causadas por acúmulo de hidrogênio não destruíram a parte nuclear. Houve alguns escapes de material nuclear, mas não foi aquilo tudo. Naquele acidente [as consequências do maremoto e do terremoto], 16,5 mil pessoas morreram, 2,5 mil ainda estão desaparecidas, e o pessoal colocou todo o acidente como uma catástrofe nuclear. [Na área nuclear] não teve nenhuma morte, houve quatro contaminações, teve um caso de câncer que está se especulando hoje, depois de dez anos, se foi relativo à radiação ou não. Veja o desencontro de informações provocado pela mídia, que em vez de esclarecer, só trouxe aquela coisa bombástica. Quiseram vender a informação do momento, mas não passaram as informações do que realmente aconteceu.
Em termos objetivos, a energia nuclear tem vantagens em relação a outras fontes alternativas, como a eólica e a solar?
Todo mundo está falando agora na energia nuclear porque está doendo nas cidades e nos países. Tsunamis, rajadas de vento e toda uma cadeia de eventos planetários estão demonstrando que se não utilizarmos a energia nuclear não vai ter jeito. Pode colocar a eólica e a solar juntas, não vai dar tempo nem rendimento para alcançar os objetivos. Por isso muitas pessoas mudaram de lado, falaram "olha, não tem jeito, temos que usar a nuclear".
A principal fonte energética da França é a usina nuclear. Qual é o histórico de acidentes por lá?
É mínimo, quase zero. Como no Brasil. Tivemos aquele acidente de Goiânia, causado pela miséria e a desinformação escolar. Não teve nada a ver com reatores nucleares. Infelizmente alguns médicos deixaram equipamento num local inadequado, o pessoal pobre verificou que era chumbo, queriam vender no ferro-velho, levaram três dias para romper o lacre com marteladas. Não sabiam que se tratava de material nuclear, que era o césio da bomba de raio-X dentário. Daí houve o escape de material fortemente radioativo, mas pela falta de instrução e da miséria. O cara queria vender chumbo no ferro-velho.
O senhor acredita então que as condições estão dadas para a energia nuclear ganhar espaço?
Não tenho dúvida. Já ganhou e está reduzindo os custos, porque quanto maior a escala, menores são os custos. E já temos avanços tecnológicos importantes, projetos mais seguros, os lesson-learnings (lições aprendidas) e tudo isso já está colocado nas bases dos projetos de todas as instalações. Sim, a energia nuclear está pronta, e está pronta para agora. No próximos 10 a 12 anos você vai ver que muitas coisas em relação aos sistemas nucleares vão avançar.
E qual a situação do Brasil neste cenário, o país tem reservas de urânio?
O Brasil tem tudo para começar agora. Só precisa de uma coisa: decisão estratégica. Em todos os países do mundo, a energia nuclear é estratégica, está sendo colocada como necessidade de Estado. Enquanto isso não for feito no Brasil, o programa nuclear brasileiro vai patinar.
Nós precisamos que a energia tenha um programa de 30 anos; precisamos dizer que vamos construir cinco reatores, vamos preparar gente, fazer cursos no exterior. Como foi no início, era estratégico, e fizemos muito bem.
Temos urânio para isso?
Em abundância. Somos a 8ª reserva do mundo, com apenas 30% do território prospectado. Se prospectarmos mais, passamos a ser o primeiro do mundo. Ou seja, quem tem urânio tem energia, e quem tem energia faz tudo.
Uma informação não muito conhecida é a da participação da energia nuclear no abastecimento do Rio de Janeiro.
Hoje 40% da energia do Rio de Janeiro é feita pelas centrais de Angra 1 e Angra 2, podendo chegar a 65%-70%, se tivermos Angra 3. Com custo comparativo bom. Porque o pessoal se ilude, como Angra 3 ficou com a obra parada muito tempo, o custo do megawatt-hora está sendo projetado entre 600 e 650 reais. É caro, porque nos primeiros 15 anos você vai ter que pagar a obra toda. Mas depois disso esse custo cai para 210 a 230 reais o megawatt-hora, que é comparável às outras fontes novas.
Você só não vai comparar o custo de energia nuclear com aquelas hidrelétricas de 30 a 40 anos, que já se pagaram, que têm custo de 90 a 100 reais o megawatt. É comparar abacaxi com tangerina, não dá. Se o reator de Angra 3 tivesse cumprido seu papel, a energia seria vendida na ordem de 240 a 250 reais o megawatt. O pessoal se esquece que quando os lagos estão vazios, quando tem a crise hídrica, você é obrigado a despachar 1% da energia nas térmicas. Na crise da bandeira vermelha ou roxa é passado o custo integral para a população, de 1.500 a 2.000 reais o megawatt. E a população não sabe disso e ninguém fala isso. Então, falar que o custo de Angra 3 vai ser alto, vai. Devido à incompetência de não fazer aquela obra terminar. Quanto mais tempo ela ficar parada, mais custosa ela é.
Para implantar uma usina nuclear, depois de tudo licenciado, leva de seis a sete anos. Depois disso, ela cobre os custos de implantação e tem o preço de mercado normal.
*O jornalista viajou a Gramado a convite do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea)
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