"A Inglaterra parece ter encontrado um equilíbrio entre a regulação e a promoção de cigarros eletrônicos". Essa frase da cientista Emma Beard, da University College London (UCL), é resultado de uma pesquisa da instituição divulgada em outubro que calcula que, apenas em 2017, entre 50 mil e 70 mil fumantes conseguiram largar os cigarros comuns graças aos chamados 'vapes' no Reino Unido.
Em relação ao aumento de fumantes com a regulação, Beard comenta que "o marketing do produto é controlado com rigor, então vemos muito pouco uso por pessoas que nunca foram fumantes, enquanto milhões de fumantes estão usando para tentar parar de fumar, ou para diminuir o hábito".
Com isso, o Reino Unido vai consolidando sua posição na vanguarda da legislação sobre o tema. Enquanto isso, no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), após realizar duas audiências públicas sobre o assunto, vem reunindo informações de hospitais e profissionais de saúde sobre o uso de dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), cuja venda segue proibida no país.
Mas a comunidade de consumidores e a indústria do tabaco alega que o item já está disseminado no país e pode ser comprado facilmente pela internet e em feiras populares. E que, sem regulamentação e controle de qualidade, o produto pode oferecer risco ao consumidor.
Segundo a indústria tabagista no Brasil, o público-alvo de consumidores é de fumantes adultos que buscam uma alternativa aos cigarros convencionais.
Nessa frente atuam empresas como PMI (Philip Morris International), Souza Cruz (que hoje pertence à British American Tobacco), Japan Tobacco International e entidades como o Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco) e a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo). Elas defendem que há dados científicos indicando os benefícios dos cigarros eletrônicos e do tabaco aquecido para adultos fumantes que não conseguem ou não querem parar de consumir produtos com nicotina.
O último relatório oficial da agência governamental de saúde do Reino Unido, por exemplo, recomenda que os DEFs continuem sendo utilizados no país em tratamentos para fumantes deixarem o vício.
Os dados do governo britânico, divulgados no início do ano, indicam uma taxa baixa de uso regular do produto entre jovens. Em 2018, 1,7% de adolescentes entre 11 e 18 anos admitiram a utilização ao menos semanal de DEFs. Entre os jovens que nunca fumaram cigarros convencionais, o uso cai para 0,2%.
Entre os adultos, a estimativa de usuários é de 6,2% da população. Entre os fumantes convencionais, a taxa sobe para 18,5%. Já entre não-fumantes, o índice é de apenas 0,8%. Entre os ex-fumantes, a proporção fica em 11,3%.
Uso é realidade no Brasil
Mesmo com a proibição, não são poucos os vaporizadores circulando no Brasil. Os produtos chegam tanto via contrabando e comercialização em e-commerce, como trazidos do exterior pelos próprios usuários, para uso pessoal – apesar da proibição da venda, a posse e o uso do item não são proibidos.
"No Brasil há um grande mercado ilegal em franca expansão", alerta o empresário Alexandro Lucian, conhecido como "Hazard" e responsável pelo projeto Vapor Aqui, que envolve um site com informações sobre cigarros eletrônicos e uma comunidade com milhares de entusiastas.
Engajado, Lucian fez campanhas de arrecadação para financiar a sua participação nas audiências públicas da Anvisa, em agosto. "Eu fui o único que representou os consumidores de forma independente", afirma.
"Só pude dar um breve testemunho de como consegui parar de fumar usando os cigarros eletrônicos, após mais de 15 anos de tabagismo, fumante de mais de três carteiras de cigarro todos os dias e falhando em parar de fumar após tentar todo tipo de método regulamentado pela Anvisa. Considero que os cigarros eletrônicos salvaram a minha vida", relata Lucian.
Ele também diz que há "centenas de estudos acerca dos cigarros eletrônicos que comprovam que em nenhuma hipótese eles são mais prejudiciais que os cigarros convencionais".
Entre eles, Lucian mostra o relatório Sem fogo, Sem fumaça: A Situação Global da Redução dos Efeitos Nocivos do Tabaco (GSTHR), lançado no final de 2018 e republicado no site dele. O documento ressalta que "não há qualquer evidência de que a experiência com o cigarro eletrônico entre os jovens os leve a fumar cigarros convencionais".
Segundo Lucian, a pesquisa na qual a Anvisa baseia a proibição do artefato, feita há quatro anos, está defasada. Na pesquisa, leva-se em conta que o cigarro eletrônico não tem um número relevante de consumidores para justificar uma mudança na regulamentação - segundo estudo da Fiocruz de 2015, 0,4% dos fumantes brasileiros consomem cigarro eletrônico, representando 650 mil pessoas em número absoluto.
O relatório GSTHR ainda estima que em 2021 mais de 55 milhões de pessoas deverão ser usuárias de cigarros eletrônicos ou produtos de tabaco aquecido sem combustão e que o valor do mercado global destes produtos atingirá 35 bilhões de dólares.
E dá exemplos como o do Japão, onde a utilização de produtos de tabaco aquecido foi a causa principal do declínio de 27% das vendas de cigarros tradicionais num período de dois anos, representando uma queda sem precedentes do tabagismo no país.
O relatório também aponta que, em 2018, 39 países mantinham "proibições inadequadas" aos DEFs, "incluindo países onde se estima que a prevalência do tabagismo vá aumentar." Por outro lado, 62 países regulam os cigarros eletrônicos de acordo com medidas regulamentares de tabaco.
Regulamentação no Brasil
No Reino Unido a quantidade de nicotina nos refis não pode ser maior do que 20 mg/ml. Os líquidos não podem ser coloridos ou conter substâncias como cafeína ou taurina. Também há exigências para evitar a exposição desses produtos a crianças e em relação às informações ao consumidor.
Se seguida no Brasil, a medida seria um meio termo entre a situação atual no país (proibição da comercialização, importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar) e de países como os Estados Unidos, onde um vácuo na regulamentação acabou sendo tomado como uma liberação incluindo uso indevido do produto.
Para a Anvisa, a decisão hoje em vigor é baseada na "inexistência de dados científicos que comprovem a eficiência, a eficácia e a segurança no uso e manuseio" desses produtos. Via nota, a agência informou que uma equipe de fiscalização monitora a internet em busca de anúncios dos itens e que, desde 2017, já retirou do ar mais de 700 publicações vendendo DEFs. Ainda assim, uma simples busca retorna centenas de resultados em português de lojas que entregam nem só o produto, mas essências no Brasil.
Em agosto, as duas audiências públicas sobre o tema promovidas pela Anvisa tinham o objetivo de promover o debate e coletar "subsídios científicos atualizados sobre os potenciais riscos à saúde e a possibilidade de redução de riscos associados a esses produtos".
Os eventos envolveram o setor produtivo, órgãos governamentais, sociedade civil organizada, instituições de ensino e pesquisa e representantes de organismos internacionais. A intenção do órgão federal é concluir a pauta sobre o assunto em dezembro deste ano.
Pressão por regulamentação também acontece nos EUA
Em junho deste ano, a prefeitura de São Francisco, na Califórnia, decretou a proibição das vendas de cigarros eletrônicos no município. Além de mirar nas fabricantes, a decisão foi vista como um instrumento de pressão sobre a agência reguladora do setor nos Estados Unidos, a FDA, que tem demorado para legislar sobre o assunto.
"Esta moratória temporária não seria necessária se o governo federal tivesse feito o seu trabalho", justificou o procurador de São Francisco, Dennis Herrera. A portaria só começa a operar em fevereiro de 2020 e diz que nenhum cigarro eletrônico poderá ser vendido ou distribuído a não ser que o produto tenha sido revisado pela agência federal.