A pandemia de Covid-19 trouxe impactos graves para o setor industrial. No Brasil, um levantamento do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) mostrou que a produção da indústria nacional recuou 10,7% nos primeiros cinco meses deste ano, no comparativo com o mesmo período de 2019. Em outros países, essa redução foi menor, com uma taxa negativa de 7,4%, na média mundial.
A China, o primeiro país afetado pela pandemia, conseguiu retomar mais rapidamente sua produção. Para recuperar o prejuízo, a indústria chinesa passou a atuar ainda mais agressivamente, desrespeitando inclusive tratados internacionais de comércio.
Um estudo publicado este ano pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) levantou as medidas adotadas por outros países contra as práticas comerciais chinesas. Foram identificados 50 programas de subsídios proibidos em cinco grandes áreas: benefícios fiscais, acesso a insumos, apoio à exportação, empréstimos preferenciais e acesso direto a fundos.
JOGO DESIGUAL
Frank Geyer Abubakir, controlador e presidente do Conselho de Administração da Unipar, destaca que a globalização e o livre mercado em âmbito mundial trouxeram inúmeras vantagens para o Brasil, assim como para outros países. Porém, ele salienta que a premissa para o adequado funcionamento desse mercado global é a preservação das regras do jogo, com todos seguindo as mesmas diretrizes. “A competição não é saudável e benéfica quando alguns países precisam obedecer a regras rigorosas enquanto outros as ignoram. Aí há um jogo enviesado, injusto e ineficiente. Sai o investimento de qualidade, sobram distorções no mercado”, pontua.
Abubakir salienta que essa desigualdade comercial ocorre principalmente em países onde a democracia é frágil e até inexistente. “Locais onde não há liberdade de imprensa para cobrar desvios. Ações de proteção ao meio ambiente não existem e as condições de trabalho se confundem com escravidão”, observa.
DUMPING
Famosa por não seguir as cartilhas do comércio internacional, a China costuma promover práticas de dumping, que é o ingresso em um mercado parceiro com um produto mais barato ao que é oferecido pelo mercado interno, desestabilizando o setor.
No Brasil, segundo o estudo da CNI, o combate às exportações desleais da China é feito basicamente por meio de ações antidumping. Outros países preferem usar medidas compensatórias. Um relatório de 2016 da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostrou que o Brasil foi o país que mais abriu investigações antidumping entre 2013 e 2015.
O levantamento da CNI mostra ainda que, em 2019, o Brasil importou US$ 5 bilhões em produtos chineses cujos subsídios são combatidos por outros países por meio de medidas compensatórias, mas não pelo próprio Brasil. Ou seja, produtos que entraram no país com preços abaixo dos que são adotados no mercado local e usando recursos ilegais para garantir esses valores. Esse montante equivale a 14,1% das importações brasileiras da China em 2019.
Para o empresário e consultor de negócios internacionais Kleber Fontes, a política passiva do Brasil tem dado brechas para ações como as da China e de outros países que atuam de forma similar. “Nesse sentido, o Brasil sempre foi um país de reação, nunca protagonista. Não há uma política governamental de atitude para resolver essas questões antecipadamente”, comenta.
Segundo ele, enquanto os grandes mercados mundiais têm regras claras e políticas bem estruturadas para evitar a concorrência desleal do comércio internacional, o Brasil ainda atua de forma pouco incisiva para proteger a indústria nacional.
DOMÍNIO DO MERCADO
Além da concorrência desigual, Fontes ressalta que a indústria chinesa se beneficia de outros quesitos da política comercial brasileira, como o regime drawback, para importar matéria-prima, o que acaba fortalecendo ainda mais a concorrência do país asiático. “Por outro lado, as empresas chinesas têm em sua cultura o objetivo de dominar o mercado. Como o governo chinês é sócio dessas corporações, eles conseguem praticar um preço muito agressivo que acaba destruindo a indústria local”, comenta.
O presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), Ciro Marino, critica o posicionamento do governo brasileiro com relação à política comercial internacional. Segundo ele, as medidas adotadas pelo país têm impactos inexpressivos no total das importações brasileiras. “Defesa comercial não é protecionismo e garante a inserção internacional”, destaca.
Segundo ele, essa é a ferramenta técnica autorizada pelo sistema internacional de comércio e que está adequada para garantir que a economia não sofra com iniciativas desleais de comércio. “É a essas práticas que o mercado brasileiro estará mais vulnerável em um processo de mais exposição comercial no mundo pós-pandemia”, argumenta.
Marino ressalta a necessidade de que o sistema de defesa comercial seja um pilar da política comercial brasileira e deve estar baseado em uma abordagem técnica, pragmática, coesa e isenta. “Somente com a garantia de ‘fair trade’ no comércio internacional o Brasil conseguirá se posicionar aos investidores como mercado seguro, maduro e saudável”, reforça.
No caso da indústria siderúrgica, por exemplo, o consumo interno teve uma forte redução durante a pandemia. No primeiro semestre deste ano, a queda foi de 19% em comparação com o mesmo período de 2019, segundo a Associação Latino-Americana do Aço (Alacero). Em todo o mundo, essa redução foi de 5,4%. A China, em contrapartida, aumentou em 2,2% a produção de aço no período.
O diretor geral da Alacero, Francisco Leal, explica que a América Latina consome cerca de 60 milhões de toneladas de aço por ano. Deste volume, cerca de 40% é importado. “Boa parte do aço consumido nos países latino-americanos vem da China, onde há muito protecionismo. As empresas pertencem ao governo e contam com inúmeros incentivos que não existem por aqui”, observa, ressaltando uma concorrência impraticável, uma vez que a tonelada do aço chinês chega aos países latinos com preços inferiores aos custos de produção local. “As assimetrias competitivas com os países asiáticos também ocorrem em outras indústrias”, comenta.
O Brasil é o principal produtor de aço bruto na América Latina, com mais de 32 milhões de toneladas em 2019. Em segundo lugar vem o México, com 18 milhões de toneladas. No entanto, Leal afirma que na concorrência internacional o custo de produção e a alta carga tributária refletem no preço final do produto. “As regras da OMC precisam ser observadas e tudo indica que a China não segue essas regras”, pontua.
Tanto que das 74 investigações de dumping no setor em toda a América Latina, 49 são contra a China. Para Francisco Leal, apesar das críticas à China, os demais países precisam aprender a agir como o governo chinês na hora de defender suas indústrias. “A China promove a devolução dos impostos para a indústria. Além disso, o governo chinês foi muito rápido para implementar uma política de subsídios aos produtos siderúrgicos, tornando o processo muito mais ágil”, exemplifica.