O Brasil deve passar por uma intensa fase de modernização com a entrada em vigor do Marco Legal do Saneamento, aprovado em junho pelo Congresso Nacional. Projeções da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram que a ampliação da rede de água e de coleta e tratamento de esgoto deve gerar mais de 1 milhão de empregos nos próximos cinco anos. Atualmente, quase metade da população brasileira ainda não tem acesso à coleta de esgoto.
A lei aguarda apenas a sanção presidencial. O texto prevê a universalização do fornecimento de água e coleta de esgoto no Brasil até 2033 e permite a participação da iniciativa privada para atender essa demanda, até então responsabilidade quase exclusiva de empresas estatais.
O cenário brasileiro do saneamento é considerado um dos mais atrasados do mundo. São cerca 100 milhões de pessoas no Brasil sem acesso à rede de coleta e tratamento de esgoto, além de 30 milhões que não contam sequer com água tratada, segundo levantamentos do Instituto Trata Brasil.
Dados do IBGE mostram ainda que cerca de 4 milhões de habitantes ainda não têm acesso a banheiro. Esses índices impactam não apenas na qualidade de vida da população, mas principalmente em indicadores de saúde pública, como mortalidade infantil e transmissão de diversas doenças, entre elas dengue, cólera, desinteria e outras.
EMPREGOS E INFRAESTRUTURA
Com metas pré-definidas para as empresas que já atuam no setor – 90% delas de origem pública –, o Marco Legal do Saneamento prevê a abertura de espaço para a atuação da iniciativa privada nas áreas onde as concessionárias atualmente habilitadas não tenham capacidade de atendimento dentro dos prazos estabelecidos.
A expansão das redes de tratamento de água e de esgoto no Brasil deve gerar investimentos estimados entre R$ 500 e R$ 700 bilhões até 2033. Anualmente, o país deveria investir aproximadamente R$ 45 bilhões nessa área, porém apenas 25% desse total vem sendo direcionado ao setor, girando em torno de R$ 11 bilhões ao ano, segundo a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
A rede de tubulações de PVC no Brasil, que em 2012 era de 542,5 mil quilômetros, precisa ser ampliada para 613,4 mil quilômetros até 2033, além da necessidade de manutenção de 381 mil quilômetros de tubulações nos próximos 13 anos, conforme o estudo “Indicadores Econômicos e Sociais da Indústria de Álcalis, Cloro e Derivados e o Impacto do Preço da Energia na Produção e Investimento”, realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicos (FIPE) e a Abiclor-Associação Brasileira da Indústria de Álcalis, Cloro e Derivados.
Para atender à demanda, a produção de cloro – item essencial para o tratamento da água – precisa aumentar em 700 mil toneladas por ano no país, volume 40% maior do que a produção atual. Em 2019 o Brasil produziu 1,5 milhão de toneladas de cloro.
RETOMADA ECONÔMICA
O presidente da Abiclor e CEO da petroquímica Unipar, Mauricio Russomanno, destaca que, além da benefício social, a universalização do saneamento será um dos projetos mais importantes pós-pandemia, com potencial benefício econômico de R$ 1 trilhão, segundo estimativas do Instituto Trata Brasil. “Para atingir o objetivo de garantir acesso a água e esgoto a 99% da população serão necessárias a mobilização e a colaboração de diversas cadeias produtivas como as de químicos, materiais de construção, engenharia, arquitetura, equipamentos, entre outras”, diz. E completa: “Os benefícios do saneamento universal vão muito além de levar dignidade aos 100 milhões de brasileiros sem acesso a esgoto e 30 milhões sem acesso a água potável; ele terá um grande impacto no custo da saúde pública, no desempenho escolar das crianças, na produtividade no trabalho, na valorização imobiliária, no aumento do turismo, enfim, levará o Brasil para o mesmo nível dos países desenvolvidos”.
Russomanno ressalta ainda que o setor de cloro-álcalis operou nos últimos 12 meses com uma utilização de capacidade por volta dos 50% e está preparado para atender à demanda adicional necessária para a implementação do marco do saneamento.
“CHOQUE DE EFICIÊNCIA”
Para o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, a inexistência de concorrência que predomina no setor reflete diretamente na deficiência das redes de saneamento, nos investimentos e na capacidade de gestão do setor. “A abertura de espaço para a iniciativa privada atuar na exploração do setor possibilitará a atração de grandes investimentos e a geração de, pelo menos, um milhão de empregos em cinco anos”, acrescenta.
Andrade afirma que o Marco Legal trará um “choque de eficiência” para as empresas estatais de saneamento, responsáveis atualmente pelo atendimento de mais de 90% dos municípios brasileiros. “A concorrência permitirá que o país coloque um ponto final à inércia desses contratos”, enfatiza.
ATRASOS “O Brasil parou no século 19 nos indicadores de saneamento”, enfatiza o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos. Os investimentos em água tratada e rede de coleta de esgoto contribuem para a promoção de hábitos de higiene, controle da poluição ambiental e, melhoria da qualidade de vida da população. Doenças como dengue, cólera, lepstopirose, disenteria e outras enfermidades estão diretamente relacionadas à falta de saneamento básico.
Para Paula Rodrigues, coordenadora da Divisão Técnica de Engenharia Sanitária, Recursos Hídricos e Biotecnologia do Instituto de Engenharia, o Marco Legal do Saneamento trará segurança jurídica aos investidores que pretendem financiar o saneamento no Brasil, além de trazer inúmeros avanços na área de saúde pública a partir da efetivação dos investimentos necessários em saneamento básico. Ela cita um estudo realizado pelo Instituto de Engenharia que mostra que o Brasil precisa de um investimento de U$S 10 bilhões anuais em regiões com maior incidência de doenças de veiculação hídrica. Em contrapartida, esse investimento resultaria numa economia superior a U$S 40 bilhões de dólares nos custos para tratamento de doenças.
SAÚDE E AVANÇO SOCIAL
O presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), Ciro Marino, destaca o avanço que o documento trará para o próprio segmento. Segundo ele, com um mercado em expansão, os fabricantes de produtos químicos para saneamento e tratamento de água e esgoto terão a oportunidade de promover novas tecnologias que poderão priorizar a sustentabilidade, eficácia e segurança para tratamento de água consumo humano e tratamento de esgoto doméstico. “Isso deve gerar investimentos em centros de pesquisa no país e na infraestrutura, gerando novos empregos em diferentes áreas.
De acordo ele, o principal benefício do Marco Legal do Saneamento será o reflexo na saúde da sociedade, com a universalização da água tratada e do sistema de coleta de esgoto para toda população. “Isso trará como consequência o desenvolvimento da educação, com a redução do número de ausências escolares decorrentes de problemas de saúde causados por falta de saneamento básico”, comenta.
Marino afirma que o próprio crescimento do mercado pode gerar inovações no setor, em produtos, modelos e serviços. “As empresas associadas à Abiquim têm um compromisso com a melhoria contínua de seu desempenho em saúde, segurança, meio e sustentabilidade”, pontua, referindo-se a iniciativas que buscam reduzir as emissões, o consumo de água e energia, além de aumentar a reciclagem, a segurança de processos e produtos e o diálogo com a comunidade.
Russomano pontua que esse conjunto de fatores e a modernização alcançada com a lei devem colocar o Brasil num novo patamar de visibilidade mundial. “É um cenário que vai mostrar a preocupação do país em reduzir as desigualdades que ficam mais marcadas com as deficiências de saneamento que temos hoje”, diz Mauricio Russomanno. “Por isso, o Marco do Saneamento pode ser também um marco civilizatório”, avalia.
DESAFIOS
A professora aposentada Araci do Carmo Rocher de Matos, 56 anos, conhece a fundo os desafios de viver sem serviços essenciais como saneamento básico e água tratada. Moradora na cidade Doutor Ulysses, na região do Vale do Ribeira, no Paraná, por mais de 40 anos Araci precisou buscar diariamente água no rio para abastecer a residência.
Ela lembra que, nos dias mais frios do inverno, ir ao banheiro era um desafio. A “casinha” – como chamavam o sanitário – era um ambiente de madeira e que ficava na área externa da residência, sem luz ou água encanada. Os dejetos eram lançados diretamente no meio ambiente, sem qualquer tipo de cuidado. “Nem banheiro tínhamos. Era tudo a céu aberto. As galinhas e outros animais circulavam em meio às fezes humanas. Era muito comum as crianças da comunidade ficarem doentes, com viroses e outros problemas”, relembra a professora.
Atualmente, Araci leva uma vida relativamente confortável. A casa onde mora tem energia elétrica, água encanada e ela é uma das poucas pessoas do bairro onde vive – o Ribeirão das Marrecas – que tem telefone em casa. Apesar de ainda não contar com a coleta de esgoto, tem banheiro dentro de casa e a fossa séptica evita que os dejetos sejam lançados a céu aberto.
Em Doutor Ulysses, apenas 56,8% das residências têm esgotamento sanitário adequado, segundo o IBGE. Ainda assim, as condições de vida na cidade melhoraram muito nos últimos dez anos, segundo a professora. O município, com menos de 6 mil habitantes, está a apenas 104 quilômetros distante da capital, Curitiba. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,546 ainda é bastante baixo e coloca o município na 5.253ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros. Porém, em comparação com 1991, há uma grande evolução. Na época, o IDH do município era 0,227. “Ter banheiro e água tratada está ligado à dignidade humana. As condições da população eram bem precárias, mas os investimentos que já foram feitos melhoraram muito a situação por aqui”, afirma.