Quem acompanhou de perto as Olimpíadas de Tóquio certamente notou que a Rússia competiu sob a sigla ROC (Russian Olympic Committee, ou, em português, Comitê Olímpico Russo). A proibição de usar o nome, a bandeira e até o hino russo veio depois do grande escândalo de doping envolvendo os atletas do país em 2019. A Agência Mundial Antidoping descobriu que as amostras eram adulteradas para ocultar a dopagem em um complexo e criminoso esquema promovido pelo governo. A Rússia não é mais comunista desde o fim da União Soviética, em 1991, mas o doping era uma tradição dentro da Cortina de Ferro.
“A gente tinha que checar o símbolo na porta quando entrava no vestiário com as nadadoras da Alemanha Oriental para saber se era o lugar certo”, conta uma nadadora americana em depoimento ao psicólogo Steven Ungerleider, autor do livro “Faust's Gold: Inside the East German Doping Machine (O Ouro de Fausto: por dentro da máquina de doping da Alemanha Oriental) e ex-membro do Comitê Olímpico dos EUA. “Elas eram gigantes, pareciam jogadores de futebol americano, e tinham pelos crescendo no corpo inteiro.” Outra nadadora comenta o comportamento agressivo das alemãs orientais: “Elas cuspiam no chão e nos olhavam como se quisessem arrancar nossa língua. Era um tanto surreal, e intimidador.”
Essas super-atletas eram fruto de um programa secreto do governo comunista da Alemanha Oriental, que selecionou os melhores atletas nas escolas do país e então passou a submetê-los a experimentos que lembravam os dias do nazismo: neles eram aplicados hormônios sintéticos, esteroides anabolizantes e uma variedade de drogas para melhorar o desempenho esportivo. O programa era supervisionado pela infame Stasi — que vigiava praticamente todos os cidadãos do país — e chegou a recrutar garotas de apenas 12 anos. Os atletas, aliás, não tinham qualquer conhecimento de que estavam sendo dopados para que o país pudesse se destacar nas competições internacionais e demonstrar a "superioridade" do comunismo frente ao “decadente” capitalismo ocidental. Os pais dos atletas, a maioria menores de idade, também não sabiam de nada.
“Eu era chamada de gay ou travesti”
Um laboratório secreto na cidade de Leipzig estabeleceu as bases químicas do programa. As nadadoras descritas no livro de Ungerleider recebiam um produto chamado Oral-Turinabol, um esteroide anabolizante derivado da testosterona fabricado pela farmacêutica estatal VEB Jenapharm. O que faz o Oral-Turinabol? Aumenta a massa muscular e reduz o tempo de recuperação, evidentemente dando vantagem sobre as adversárias.
Prescrito a meninas que mal haviam entrado na puberdade, causava o aparecimento de pelos, engrossamento da voz, as deixando com uma aparência masculina. “Eu era chamada de gay ou travesti”, afirma a nadadora Katharina Bullin, em depoimento a um documentário da rede pública americana PBS sobre o doping na Alemanha Oriental. Hoje, mais velhas, as atletas que foram submetidas ao programa sofrem de várias condições decorrentes do doping, como diabetes, pressão alta, problemas nos rins e nos nervos. Na juventude, várias desenvolveram cistos no ovário e tiveram abortos. Efeitos que eram bem conhecidos dos cientistas alemães.
Medalha, medalha, medalha
Os resultados apareceram. Nas Olimpíadas de 1968, na Cidade do México, a Alemanha Oriental obteve um bom desempenho, com nove medalhas de ouro, mas nada se compara ao que veio depois, na década de 1970, com o programa estatal de dopagem a pleno vapor. Em Munique foram 20 medalhas de ouro, deixando o país atrás apenas da União Soviética e dos Estados Unidos. Nas Olimpíadas seguintes, em Montreal, no auge do programa, a Alemanha Oriental conquistou 40 medalhas de ouro, ultrapassando até os poderosos EUA. Em 1980, em Moscou, foram 47 ouros. Em 1984, a Alemanha Oriental boicotou os Jogos Olímpicos juntamente com todos os países do bloco soviético. Mesmo em Seul, em 1988, manteve o bom desempenho: 37 ouros e mais uma vez o segundo lugar, novamente à frente dos EUA e de sua vizinha Alemanha Ocidental, muito mais rica e desenvolvida, que obteve apenas 11 ouros. Nas Olimpíadas de Tóquio, realizadas este ano, não teria para ninguém: a Alemanha Oriental de 1976 ficaria em primeiro lugar no quadro de medalhas.
A surpreendente performance deve-se ao fato de que, naquela época, o Oral-Turinabol não era detectado nos exames de urina, deixando a Alemanha Oriental livre para aplicá-los em seus atletas até 1981. Mesmo depois que o Comitê Olímpico Internacional recorreu a cientistas para desenvolver testes que detectassem o uso de testosterona, os médicos da Alemanha Oriental conseguiram criar um método capaz de equilibrar a quantidade do hormônio no organismo dos atletas de modo a burlar o sistema.
Durante os anos 1980, os cuidados foram redobrados. Todos os atletas eram testados antes de sair do país e, caso o resultado fosse positivo, jornais oficiais inventavam alguma notícia atribuindo a ausência a uma lesão ou algo do tipo. Relatos esporádicos sobre o programa de doping eram feitos por esportistas que conseguiam fugir do país. Mas a verdade só apareceu em 1993, quando os arquivos da Stasi tornaram-se públicos.
Os arquitetos desse grande esquema de doping que arruinou a vida de milhares de jovens da Alemanha Oriental escaparam praticamente ilesos, mesmo após terem sido julgados na década de 1990 e nos anos 2000. No máximo receberam multas irrisórias de menos de 10 mil euros e ainda escaparam da prisão, como Lothar Kipke, médico da associação de natação da Alemanha Oriental. Os atletas que fizeram parte do programa, sem saber que estavam sendo vítimas de experimentação com drogas perigosas, sofrem os efeitos até hoje.
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