“E aí? O que você vai fazer?”
Larissa se lembra dos olhares voltados para ela quando o namorado, Pedro, recebeu a confirmação de que seria pai. A menstruação atrasada acendera o sinal e o primeiro teste foi feito na casa da colega de ensino médio que a havia apresentado ao rapaz, de 18 anos, em serviço militar. Depois do resultado, foi encontrá-lo na praça principal de Itajubá, no interior de Minas Gerais, onde costumava se encontrar com os amigos. À notícia de que estava grávida, aos 16 anos, ouviu a pergunta.
“Respondi que teria o bebê e ele me disse ‘não vai, não’. Na mesma hora eu dei meia volta e saí andando. A segunda coisa que ele me disse foi: se você acha que a gente vai casar...”, conta a estudante, à Gazeta do Povo. Dias depois, Pedro entrou em contato e os dois ficaram juntos por duas semanas. Depois disso, segundo Larissa, ele terminou para aproveitar o Carnaval. Acompanhou alguns ultrassons mas, no dia seguinte ao nascimento da pequena Júlia, não apareceu para registrá-la. Quatro dias depois, exigiu teste de DNA. “Ele sabia que minha primeira relação sexual tinha sido com ele, pouco tempo antes da gravidez”, diz a jovem, hoje com 23 anos.
Aos seis anos, Júlia não tem convívio com o pai, cujo último nome só recebeu perto de completar um ano – quando finalmente passou a receber a pensão devida. Até então, a menina fazia parte das cerca de 5,5 milhões de crianças registradas sem sobrenome paterno no Brasil – isso, considerando apenas os dados do Censo Escolar realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2011, cujos resultados saíram em 2013.
Uma década depois do estudo, o cenário não é animador: só entre janeiro e agosto do ano passado, 80.904 crianças registradas nos cartórios brasileiros (cerca de 6,31%) contam apenas com o nome da mãe. Mais difícil é estimar o número de vítimas do abandono afetivo, no qual o pai chega a registrar o bebê, paga a pensão, mas não participa da criação. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que, atualmente, 12 milhões de lares sejam chefiados por mulheres. 57% delas vivem abaixo da linha da pobreza.
O flagelo do abandono paterno é daqueles que, literalmente, remontam ao nascimento do país – ainda que suas causas e contextos tenham se transformado ao longo dos anos. No século XVIII, por exemplo, a Zona Portuária do Rio de Janeiro abrigava centenas de jovens grávidas abandonadas por marinheiros que passavam pela região. O drama destas meninas que sequer podiam registrar seus filhos (seriam necessários três séculos para que os cartórios brasileiros aceitassem o registro de crianças sem a presença do pai – legislação aprovada em 2015) levou à criação do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, construído por padres jesuítas.
Alvo de um incêndio criminoso ainda no século XVIII, o local hoje abriga outra iniciativa que busca acolher gestantes de baixa renda, o Centro Social Nossa Senhora do Parto, por onde já passaram cerca de 400 mulheres desde a inauguração, em 2018. “É muito, muito comum recebermos mulheres abandonadas pelos parceiros. Já recebemos adolescentes, mas a maioria tem entre 18 e 19 anos. Alguns registram e somem, argumentando que não têm dinheiro, outros desaparecem assim que descobrem a gravidez”, diz a assistente social Sílvia Gonzaga, que trabalha no projeto.
“Ainda que estejam desesperadas, são mulheres muito fortes, que chegam decididas a dar conta de tudo sozinhas. Elas não veem como vítimas, sabe? Têm uma postura ‘esse filho é meu e eu resolvo, a justiça não vai me dar nada’. Tomam o abandono como um problema de relacionamento, dizem que os homens não têm compromisso, que ‘ele não quer mais nada comigo’, mas que elas também não querem aborrecimento”, relata a especialista.
A experiência da assistente é corroborada pela advogada Marcela Figueiredo, professora do Ibmec e da PUC-Rio e especialista em direito de família. “Percebo que a procura por assistência jurídica passa pelo conhecimento de que a pessoa teve um direito lesado. Normalmente, pessoas de baixa renda, por terem pouco acesso à informação, desconhecem que têm alguns direitos ou que podem buscá-los gratuitamente”, explica. “Normalmente, os pais que abandonam materialmente os filhos alegam desemprego ou que não ganham o suficiente para isso. No entanto, nem o desemprego, nem uma renda mensal pequena exoneram os genitores do dever de sustentá-los”. Marcela recorda que o abandono material – a recusa a registrar e sustentar o filho – é crime, que pode levar à prisão ou à penhora de bens e contas bancárias.
O ciclo vicioso do abandono
A equipe do Centro Social Nossa Senhora do Parto é testemunha do ciclo vicioso de abandono que aflige as famílias vítimas do abandono. “Vejo que elas pensam que porque aconteceu com a avó, com a mãe e com as amigas, criar um filho sem pai é absolutamente normal. Ter um marido presente é, literalmente, um privilégio”, conta a assistente Iranisi Muniz, que atende diariamente no projeto. Entre as famílias que atende, Muniz ressalta um comportamento que passa de geração em geração: mães abandonadas que cobram que as filhas grávidas se virem sozinhas, mas adotam os próprios netos quando estes vêm de filhos homens que não querem mais se relacionar com a companheira: “é como se elas confiassem que as filhas dão conta cuidar – porque elas deram -, mas os filhos fossem frágeis”.
Essa foi a situação vivida por Janaína, de 29 anos, abandonada pelo pai de Wellington, de 13. Moradora da Comunidade de Manguinhos, na Zona Norte do Rio, Janaína sustenta o menino trabalhando de seis a sete dias por semana como faxineira de uma clínica odontológica e de residências. “Tenho que dar o exemplo para o meu filho, porque sou sozinha. Agora que ele está entrando na adolescência, tenho que prestar mais atenção. Faço de tudo para ele estudar e, sempre que posso, levo para conversar com o primo que é do Exército, para que tenha um bom exemplo. Na favela, o exemplo dos meninos é o tráfico”, conta a diarista, que se ressente da pouca ajuda da família. “Quando engravidei, ouvi da minha mãe ‘você fez, você banca’. Mas do filho do meu irmão ela cuida”, conta.
O abandono, contudo, não é exclusivo de famílias de baixa renda. A estudante Larissa, por exemplo, contou com o apoio da mãe e mantém contato com parte da família do pai de Júlia. Também tem ajuda da família paterna, ainda que tenha sido vítima de abandono afetivo do próprio pai, principalmente depois da gravidez. “Até hoje, ele não fala comigo”, conta. Os números do abandono afetivo – no qual o pai, embora honre o compromisso material, está ausente da criação da criança -, são mais difíceis de computar. No Brasil, o primeiro caso de indenização por abandono afetivo aconteceu em 2012, por ordem da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determinou o pagamento de 200 mil reais a uma filha abandonada na infância e adolescência.
Roberta, mãe de Larissa, conhece bem os efeitos do abandono – que, no seu caso, foi levado às últimas consequências. Sua primeira gravidez aconteceu aos 16 anos, de um relacionamento com um ex-seminarista oito anos mais velho, também de uma família de classe média. Foi o próprio namorado quem a levou para fazer o exame, registrado com o nome de uma cunhada, para que “não associassem ao nome dele”; e veio dele a notícia da gravidez. “Ele me dizia que minha mãe e meu irmão iriam me matar e perguntava onde eu iria morar. Eu pensava ‘ué, com você’. Tinha certeza de que ele escolheria o melhor para mim”.
Semanas depois, o namorado apareceu com um coquetel de chás e remédios. Roberta continuou grávida. Até que, com a ajuda de um contato de São Paulo, o rapaz conseguiu o Citotec, um abortivo popular vendido clandestinamente. “Eu não queria aquilo, sabe? Eu me lembro da dor do parto e da sensação. Saí fora do ar depois disso, comecei a ter pensamentos suicidas”, lembra a entrevistada, hoje, com 42 anos. O namoro acabou e, anos depois, nasceram Larissa e Laura, filhas de relacionamentos diferentes e ambos marcados por ausências.
“Ao longo da minha vida, eu assumi que a responsabilidade das minhas filhas é minha. O cara não dá conta? Fui eu quem gerou, eu tomo para mim. E é nessa perspectiva que voltei a estudar, porque só tinha ensino médio. Quando encontrei meu marido, já tinha definido que não queria mais filhos, porque penso que a responsabilidade estará toda comigo”, diz Roberta.
O paizão que faz o mínimo
O que leva um jovem a abandonar uma companheira grávida? No caso das famílias mais pobres, a justificativa mais frequente, segundo as assistentes sociais ouvidas pela reportagem, é o desemprego e a sensação de que “é muito difícil” cuidar da criança. “Quando conseguimos que os pais dos bebês venham ao Centro, eles chegam dizendo que não têm dinheiro. Nós oferecemos ajuda para que eles ingressem em programas de estágio ou no Jovem Aprendiz, ajudamos a encontrar caminhos para que terminem os estudos, mas eles desaparecem”, conta Iranisi.
“Se há algo que o poder público pode fazer nesse sentido é dar mais amparo e educação a estes meninos que estão perdidos; criar mais centros educativos, vagas de trabalho e divulgar estes projetos. É importante que eles compreendam que há caminhos para sustentar a criança e ter uma vida profissional”, diz a assistente.
É importante ressaltar também que o ciclo vicioso comportamental que atinge as meninas também tem sua versão masculina. “Como muitos desses meninos cresceram sem pai, eles nem sequer imaginam o que é ter um. Quando recebem a notícia da paternidade, não sabem nem o que é preciso fazer, não conseguem conceber a função de um homem responsável”, explica o psicólogo Mizael Silva, vice-presidente do Instituto Infância Protegida.
Nas famílias de classe média e alta, o problema é mais sutil: sem a questão material, sobra a sensação de que “a vida acabou”, de que se é “muito novo para assumir essa responsabilidade”, de que o bebê “foi um acidente” e, portanto, a obrigação afetiva é menor.
“Com tantas formas de contracepção disponíveis, é de se pensar que a gravidez indesejada e o consequente abandono não é só falta de informação. Acho fundamental pensar sobre como a paternidade está sendo encarada na nossa pós-modernidade, onde a gente é estimulado a estar feliz o tempo todo e qualquer coisa que venha a dificultar um desejo deve ser deletada”, diz a psicóloga Maria Cristina Neiva de Carvalho, professora de Pós-Graduação em Psicologia Jurídica da PUC-PR. “Ter um filho necessariamente vai, em algum momento, te impedir de fazer o que quiser. A sensação que eu tenho é que não há paciência, habilidade psicológica nem uma proposta interna do exercício efetivo deste papel”.
Some-se a isto o fato de a entrada das mulheres no mercado de trabalho não ter sido acompanhada, em muitos casos, da contrapartida masculina em casa.“Homens que executam o básico de suas funções paternas são, quase sempre, vistos como exemplares raros, que devem ser reverenciados ou enaltecidos. O cara que é visto como ‘paizão’, geralmente, não faz mais do que uma mãe comum, vista como alguém que cumpre o mínimo esperado”, diz Nay Macedo, psicóloga perinatal e especialista em parentalidade.
“Muitos homens tentam ir além destas expectativas ainda fazem o mínimo e já consideram que é o bastante. Ainda têm dificuldade para assumir atividades que geralmente ficam a cargo da mulher - especialmente as de higiene, sono, alimentação e escola. Como se educar uma criança também não envolvesse cortar unhas, verificar se as roupas ainda servem, escovar os dentes, levantar na madrugada para checar a febre, conferir as vacinas, espantar os pesadelos, negociar no momento da frustração, ensinar a usar o banheiro ou a lidar com sentimentos e emoções”, explica.
Para Mizael, a criação de meninos aptos à paternidade passa pela construção do senso de responsabilidade: “Eles devem sentir, desde cedo, que o que fazem em casa tem impacto na família. Podem aprender a lavar a louça, guardar os próprios brinquedos, arrumar o quarto, ajudar na limpeza. Normalmente, os meninos que compreendem a exigência do cuidado familiar desde cedo são os que, ainda que tenham sido abandonados pelos pais, crescem com o propósito de não reproduzir o comportamento com as parceiras”.
Por outro lado, há que se repudiar com veemência a figura do pai ausente ou omisso. “É preciso passar a ideia de que abandonar os filhos é um constrangimento, ainda que sejam frutos de uma relação eventual ou não planejada. Filhos de ‘uma noite só’ também são responsabilidade paterna”, diz Macedo. Vale lembrar que um país de pais presentes, de acordo com várias pesquisas nacionais e internacionais é também um país com menos evasão escolar, menos violência (tanto em casa quanto nas ruas) e menos encarceramento; não à toa, o abandono paterno é, por vezes, tratado como o “aborto masculino”. O zelo pela vida em sua integridade, afinal, não pode ser exigido só de uma das partes.
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