Em 2020, a campanha presidencial de uma senadora americana tomou uma página completa para propaganda em jornal, prometendo aos eleitores que seu governo teria como alvo a fortuna pessoal de um homem judeu específico. O anúncio destacava o patrimônio líquido vultoso deste judeu, listando a quantidade de dólares que ele seria forçado a dar para o bem comum sob a proposta da senadora.
Ele “não pode nos comprar”, como afirmou triunfalmente antes a senadora.
Em 2017, a campanha presidencial de outro senador americano produziu um vídeo que perguntava o que este mesmo homem judeu planejava “fazer com todo esse dinheiro”. O material acrescentava que “não parece que ele vai usar para ajudar outras pessoas”. O vídeo, que foi produzido para uma série chamada “As Faces da Ganância”, também listava a quantidade em dólares da fortuna pessoal deste judeu.
A CNBC chamou o anúncio no jornal de “jogada ousada”. Um repórter alegou que ele demonstrava “audácia”. Quanto ao ataque em vídeo, quase passou despercebido por completo na imprensa, só mais um caso normal da cruzada do senador contra a classe dos doadores de campanha.
Se você apostou que o homem judeu é o megadoador democrata George Soros e que os críticos são congressistas republicanos, você errou. Os senadores são Elizabeth Warren e Bernie Sanders, e seu alvo era o megadoador republicano falecido Sheldon Adelson. A oposição dos senadores ao engajamento político de Adelson e a cobertura frequentemente simpática da imprensa dessa oposição são relevantes, mesmo dois anos após a morte dele, porque estão dizendo — mais uma vez — que só notar a atividade política de Soros é antissemitismo, sem falar em questioná-la.
Ron DeSantis, governador da Flórida, tropeçou nesse mecanismo defensivo específico em 30 de março ao observar, corretamente, uma conexão entre Soros e o procurador do distrito de Manhattan, Alvin Bragg, que indiciou o ex-presidente Donald Trump na semana passada com 34 acusações de falsificação de registros empresariais.
“O uso do sistema legal como arma para avançar uma agenda política vira o governo da lei de ponta cabeça”, declarou o gabinete do governador nas redes sociais. “É antiamericano. O procurador distrital de Manhattan, com apoio do Soros, tem repetidamente dobrado a lei para rebaixar crimes e desculpar a má conduta criminosa”.
A nota acrescenta que “ainda assim, agora ele está esticando a lei para perseguir um oponente político. A Flórida não vai colaborar com um pedido de extradição dadas as circunstâncias questionáveis em jogo com esse procurador de Manhattan apoiado por Soros e sua agenda política”.
A reação da imprensa corporativa por DeSantis usar o termo “apoiado por Soros” veio com celeridade e fúria, incluindo redações cara-de-pau alegando que há uma conspiração antissemita mais ampla.
“Por trás do indiciamento de Trump, a direita encontra um vilão familiar em Soros”, diz um título do New York Times. O subtítulo diz “Teóricos da conspiração há tempos atribuem eventos díspares a George Soros, em ataques frequentemente considerados antissemitas”.
“Trump, DeSantis e outros republicanos usam difamação antissemita sobre ‘Soros’ depois do indiciamento por Bragg”, diz uma manchete do Yahoo! News.
A MSNBC declarou, em uma manchete, que o “Partido Republicano recorre a ataques antissemitas e racistas para defesa em processo contra Trump”.
Registre-se que, em 8 de maio de 2021, o PAC (“Comitê de Ação Política”, um tipo de entidade regulada pelo governo dedicada a financiamento de campanhas e causas) Color of Change (“Cor da Mudança”) endossou Bragg, prometendo “mais de um milhão de dólares para uma campanha [de despesa independente]” em apoio à sua candidatura. Em 14 de maio de 2021, Soros fez um cheque de um milhão de dólares para o Color of Change. O PAC acabou gastando US$ 420 mil (R$ 2,1 milhões) em despesas independentes para Bragg, de acordo com os registros eleitorais de Nova York.
E há o próprio Soros, que escreveu no Wall Street Journal em julho do ano passado: “Tenho me envolvido em esforços para reformar o sistema de justiça criminal em meus mais de 30 anos de filantropia”. “Apoiei a eleição (e mais recentemente a reeleição) de promotores que apoiam a reforma”, continuou o bilionário. “Fiz isso de forma transparente e não pretendo parar. Os recursos que forneço permitem que candidatos sensatos e voltados para a reforma sejam ouvidos pelo público”.
Esses detalhes são relevantes em se tratando de avaliar os comentários de DeSantis, e os detalhes sugerem que Bragg é de fato apoiado por Soros. Mas é antissemita apontar isso, segundo nossos estimados comentaristas.
“Você só precisa olhar para o ‘apoiado por Soros’, está falando apenas de judeus”, alegou o apresentador da MSNBC Joe Scarborough. “Eles estão atacando banqueiros internacionais judeus. É o que os antissemitas vêm fazendo há centenas de anos, atacando banqueiros internacionais judeus. É isso que eles fazem. Eles tentam culpar tudo nos banqueiros internacionais judeus. É a Alemanha em 1933”.
Ironicamente, Scarborough foi acompanhado nesse segmento pelo colega âncora da MSNBC, Al Sharpton, que infamemente incitou tumultos antissemitas na região de Crown Heights, no Brooklyn, no início dos anos 1990. Sharpton também é responsável por instigar o ataque mortal à loja de moda Freddy's, de propriedade judaica, no Harlem. O incidente começou com os discursos de Sharpton no rádio, visando “invasores brancos” no bairro majoritariamente negro. A Rede de Ação Nacional de Sharpton liderou protestos do lado de fora do estabelecimento de propriedade judaica, com manifestantes gritando “sanguessugas” e “Vamos queimar e saquear os judeus”. O episódio terminou abruptamente quando um manifestante armado invadiu a loja, incendiando-a e matando sete funcionários, e depois se matou.
Em outro programa na MSNBC, Joy Reid acusou DeSantis de usar “apitos para cães” (ou seja, mensagens cifradas) para promover um “meme, essa ideia da direita de que os afro-americanos, os negros em posições de poder são controlados por algum supervisor judeu que está puxando as cordas”. Como lembrete, não faz muito tempo que Reid chamou Sheldon Adelson de um “oligarca americano” que possui “um partido político” e cuja “ganância literalmente não conhece limites”.
Na New Republic, um artigo de opinião tem o título “Por que a direita não consegue abandonar seus ataques antissemitas contra George Soros”.
Isso é absurdo. É absurdo afirmar que é antissemita notar a atividade política de Soros. É absurdo negar, contra todos os fatos, evidências e declarações do próprio Soros, a conexão entre os esforços do financista para reformar o sistema de justiça criminal e Alvin Bragg. É absurdo fingir que é antissemita apontar tal conexão. É especialmente absurdo considerando que a esquerda regularmente e legitimamente analisou a influência política de Adelson e tudo isso sem sequer um resmungo da imprensa.
Na verdade, o que nossa imprensa tinha a dizer sobre as constantes perguntas e críticas da esquerda sobre o envolvimento de Adelson na política republicana? Acontece que a mídia estava muito feliz em fazer coro — questionando, investigando e criticando o financiamento de Adelson para políticas e candidatos conservadores.
A revista New York, por exemplo, alertou em 2015 que Adelson estava preparado para “comprar a presidência”. O artigo incluía uma imagem editada, sobrepondo o rosto do doador do Partido Republicano ao de Marlon Brando em “O Poderoso Chefão”.
A revista The Nation alertou em 2014 que Adelson queria “ser os irmãos Koch para Israel”. Mesmo depois de sua morte, a revista reclamou que as doações políticas de Adelson ainda estão “minando a democracia”. Por onde o rico doador judeu passava, na verdade, “a corrupção — seja ela moral, legal, política ou cultural — nunca estava longe”.
A revista New Yorker publicou uma devassa em 2008 intitulada "The Brass Ring" (“O Anel de Latão”), com um subtítulo que dizia: “A busca incansável de um multibilionário por influência global”.
A NBC News referiu-se a Adelson especificamente como um “criador de reis do Partido Republicano”.
Antes de sua morte em 2021, o Washington Post, a CNBC, o New York Times e o site Politico publicaram artigos detalhando o envolvimento do doador do Partido Republicano na política estadual e federal e suas doações a vários candidatos. Adelson era, de fato, um megadoador de grande porte que investia oceanos de dinheiro em causas republicanas e conservadoras. Os relatórios eram, portanto, legítimos: a mídia atendia ao interesse público ao cobrir seus motivos, sua influência e suas crenças.
E mais: as atividades de Adelson eram um alvo justo para as críticas de Sanders e Warren. O anúncio de Warren para seu proposto “imposto sobre a riqueza”, que ela colocou em um jornal de Nevada de propriedade de Adelson, não era antissemita. O vídeo “Faces da Ganância” de Sanders não era antissemita. Acima, minha abordagem do anúncio do jornal e do vídeo foi feita para imitar a abordagem da imprensa aos comentários de DeSantis. É instrutivo olhar para essas coisas com as partes invertidas.
Soros e Adelson: ambos influentes, ideológicos, ricos, dispostos a investir bilhões de dólares em causas políticas — e judeus. No entanto, a mensagem que recebemos nestes últimos anos é que é antissemita tratar Soros da mesma maneira que Adelson foi tratado.
Por que é antissemita aplicar os mesmos padrões usados em Adelson a Soros? Como os conservadores às vezes gostam de brincar, é apenas (D)iferente.
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